Morreu aos 107 anos Toko Shinoda, cuja pintura procurava “a memória elusiva do vento”

Iniciou o seu percurso pela caligrafia tradicional japonesa e encontrou a sua voz artística ao deparar-se com o expressionismo abstracto americano. Considerada uma das maiores artistas japonesas do século XX e com sólido percurso internacional, morreu em Tóquio, esta segunda-feira.

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Toko Shinoda procurava uma pintura “tão elusiva como a memória de um aroma agradável ou do movimento do vento” Kiyoyuki Fukuda/Tolman Collection of Tokyo

O traço tinha que ser exacto e correcto, o definitivo. Nada que inscrevia no papel podia ser trabalhado posteriormente, assim ditava a delicada natureza da tinta sumi, usada no Oriente há centenas de anos, e aquela que Toko Shinoda toda a vida usou para pintar. Calígrafa de grande talento, descobriu-se verdadeiramente artista quando, procurando voz sua que transcendesse a reprodução dos caracteres tradicionais japoneses, se deparou, nos anos 1950, com o expressionismo abstracto americano. O que resultou do encontro foi uma vincada expressão individual que a tornou uma das mais importantes artistas japonesas do século XX, celebrada internacionalmente. A ela se dedicou, serena e afincadamente, até ao fim de uma longuíssima vida. Toko Shinoda morreu esta segunda-feira num hospital em Tóquio, revelou Allison Tolman, a sua galerista nos Estados Unidos. Tinha 107 anos.

Nascida a 28 de Março de 1913 em Dalian, na China, quinta dos sete filhos de um próspero casal japonês (o pai geria uma plantação de tabaco), mudar-se-ia ainda na infância para o Japão, a que os pais regressaram e país onde, com a excepção de dois anos passados nos Estados Unidos, nos anos 1950, viveria até ao fim da vida. A caligrafia japonesa era um ofício que atravessava a família. Foi o pai que a iniciou na arte e este, por sua vez, tinha tido como professor um tio, escultor e calígrafo, que trabalhara para a corte do imperador Meiji (1852-1912).

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Snow (1982) Toko Shinoda

Aos 20 anos, viu o seu trabalho exposto pela primeira vez e, em 1940, inaugurou a sua primeira exposição individual, numa galeria em Tóquio. Crescendo no ambiente de uma família tradicional japonesa que, ao mesmo tempo, estimulava as tendências criativas dos filhos, Toko Shinoda acabou por sentir o apelo irreprimível da busca por uma expressão artística que extravasasse as tradições caligráficas japonesas em que se iniciara. “O meu pai sempre me censurou por ser desobediente e ter abandonado o caminho tradicional, mas tinha que o fazer”, contava em entrevista à Time, em 1983. Nessa altura, já era uma artista celebrada no seu país e reconhecida internacionalmente, com o seu trabalho exposto no MoMA, em Nova Iorque, no Kunstmuseum Den Haag, na Holanda, ou no British Museum, em Londres. O momento decisivo para a definição da sua linguagem tivera lugar três décadas antes.

Em 1956, dois anos depois de ver obras suas expostas numa mostra de caligrafia japonesa no MoMA, viaja para Nova Iorque e mantém-se dois anos nos Estados Unidos. O contacto com expressionismo abstracto de Jackson Pollock ou Mark Rothko marcou-a de forma determinante. Não só deparar-se com as obras que aqueles iam criando na época, mas a proximidade que, nesses anos, manteve com os artistas ligados ao movimento. No obituário do New York Times é citada a recordar esse período: “Eram pessoas muito generosas e era convidada muitas vezes a visitar os seus ateliers, onde partilhávamos ideias e opiniões sobre o nosso trabalho. Foi uma grande experiência estar com pessoas que partilhavam sentimentos em comum”. Desse encontro entre a força expressiva do abstraccionismo e a elegância intemporal da caligrafia japonesa nasceria o estilo que tornaria seu e que não mais abandonaria.

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Tamayura (1996) Toko Shinoda

As suas pinturas, “muitas vezes assimétricas, podem cobrir uma rígida forma geométrica com a mais simples pincelada caligráfica. O efeito combinado parece capturar e agarrar-se a algo evanescente”, descreve Margalit Fox, a autora do obituário no New York Times. Curiosamente, recusava a noção de que o seu trabalho representava uma síntese de tradição oriental com vanguarda ocidental. “Nunca estudei a arte do Ocidente”, declarava em 1980 à United Press International. Lera sobre a história e o presente dessa arte, dizia então, mas enfatizava que “nenhuma influência” fizera caminho nela. “É insensato para um japonês fazer a arte do Ocidente. Uma coisa é praticar coisas como ciência naturais ou química, mas arte, não”.

Redundância na pintura figurativa

Vestindo sempre os quimonos tradicionais do seu país, mesmo quando estes caíam em desuso, reservados para momentos específicos da vida social, Toko Shinoda usava como material de trabalho preferencial a tinta sumi, criada a partir de fuligem prensada em blocos sólidos. Embebidos em água, libertam os pigmentos que o pincel transfere para o papel. Rapidamente e sem dúvidas por parte do pintor, dada a delicada fragilidade do material. “A composição tem que estar definida na minha cabeça antes de pegar no pincel. Depois, como se costuma dizer, a pintura cai simplesmente do pincel”, dizia ao Business Times de Singapura em 2014. A tinta sumi que usava tinha entre 300 e 500 anos. Comprara uma grande quantidade dela nos anos 1950, chegada em grandes lotes ao Japão desde a China, e foram esses blocos então adquiridos que usou até ao fim.

Para além daqueles quadros, normalmente usando papel tradicional chinês e japonês como tela, o trabalho de Toko Shinoda passava também pela litografia ou pelos murais em espaço público, de que é exemplo a série que criou para o Templo Zojoji, em Tóquio.

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Arrived wind (2001) Toko Shinoda

O abstraccionismo em que se expressava nascia daquilo que via como impossibilidade e redundância na pintura figurativa. “Se tenho uma ideia definida, porquê pintá-la? Já foi apreendida e aceite. Uma estante de bambu é mais bonita do que uma pintura pode ser. O Monte Fuji é mais impressionante do que qualquer imitação possível”. Era outra coisa aquilo que procurava. Uma pintura “tão elusiva como a memória de um aroma agradável ou do movimento do vento”.

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