O Mundo Rural, a síndrome do alcatrão e a esquerda caviar

Podemos aceitar, em nome da liberdade de opinião, essa visão ecológico-museológica do mundo rural e das suas atividades produtivas primárias. O que já não podemos aceitar é que nos tentem impingir essa visão como sendo o paradigma do futuro.

 Com mais de dois terços da população portuguesa a residir em áreas urbanas, as cidades tornaram-se os grandes centros de criação de riqueza e de emprego, onde o poder económico anda de braço dado com o poder político, o poder do conhecimento e o poder da comunicação. Porém, esse mundo poderoso seria um pesadelo sem o mundo rural que lhes dá os alimentos e a água que o mantém vivo, o ar que respira ou as paisagens para o seu lazer.

Nunca como hoje o espaço rural foi tão vital para a qualidade de vida dos centros urbanos. E, no entanto, nunca como hoje este mundo rural - com a sua agricultura, a sua pecuária, a sua floresta, os seus agricultores e produtores florestais - foi tão desconsiderado. Basta para isso ler ou ouvir certos sábios da cidade, grupos ecologistas, ou mentores das chamadas novas esquerdas, para quem o espaço rural deveria ser uma espécie de Rede Natura 2000 ou um museu ao ar livre, onde as atividades agrícolas deveriam ter um caráter excecional e sempre muito verde.

Um primeiro exemplo desta visão fashion e sexy tem a ver com a sustentabilidade no setor agroalimentar. Como todas as atividades, a agricultura tem externalidades positivas e negativas, sabendo que o que temos a fazer é potenciar aquelas e minimizar estas, mediante uma utilização eficiente no uso dos fatores de produção, especialmente a água e o solo. Contudo, nesta visão não há lugar para o regadio e sistemas intensivos, fertilizantes químicos, pesticidas, fungicidas, herbicidas, ou espécies florestais de crescimento rápido, para citar alguns dos seus demónios de estimação. Temos um défice alimentar de 3.700 milhões de euros, uma produtividade do trabalho e um rendimento agrícola de 40% e 60% da média da União Europeia, respetivamente. Como é que queremos aumentar a produção e o rendimento apenas com políticas de extensificação, de sequeiro e modos de produção biológicos? Como é que é possível fazer uma agricultura competitiva sem irrigação num clima como o nosso? E qual é o problema de regar as culturas, se a água for utilizada com racionalidade, maioritariamente superficial, armazenando-a no inverno, evitando assim a erosão e melhorando a situação dos lençóis freáticos – já que toda ela, exceto a evaporada, retorna ao solo?

O segundo exemplo tem a ver com a floresta. Nas narrativas em questão, de que a política do atual governo é um exemplo paradigmático, a floresta tem primeira e essencialmente uma função ambiental, sendo a componente produtiva uma espécie de subproduto, que poderá dar retorno ao investimento apenas a muito longo prazo. Como dizia recentemente um governante com responsabilidades no setor, a política florestal atual consiste em ver a árvore pela copa e não pelo seu valor económico. Então e os 2.300 milhões de euros com que contribui anualmente para a balança comercial? Quem conhece bem a realidade, sabe que as pessoas não investem na floresta se não tiverem uma expetativa de algum retorno económico. Ou seja, não haverá sumidouro de carbono se não houver quem plante as árvores e trate delas. E é impossível ao Estado, pela inexorável escassez de recursos, substituir-se aos proprietários para construir a floresta do capuchino vermelho que esta visão perspetiva. E mesmo que conseguisse recursos para isso, não seria capaz de assegurar a sua gestão durável. Basta olhar para a desgraça em que estão as chamadas matas nacionais.

O que nesta matéria precisamos é de regras de ordenamento razoáveis, simples e claras e um sistema de monitorização e sancionatório que seja levado a sério e não um faz de conta. Criar uma medida robusta de apoio à plantação de folhosas a financiar pela PAC/PDR e de apoio à gestão do combustível com o dinheiro do Fundo Ambiental, que tem de apoiar mais na floresta e a agricultura. Para as espécies de crescimento rápido (as únicas que dão retorno no horizonte da vida de quem investe e que, por isso, são limpas e bem geridas), que se permita a plantação de novas áreas, mas com a exigência de incorporação nelas de mosaicos de biodiversidade com folhosas, na ordem dos 30 a 35%, incluindo nos terrenos a replantar. Poríamos, assim, mais de um milhão de hectares de matos e incultos a produzir, melhorávamos o desequilíbrio das contas externas e reduzíamos o risco de incêndios.

Podemos aceitar, em nome da liberdade de opinião, essa visão ecológico-museológica do mundo rural e das suas atividades produtivas primárias, apesar de todos sabermos que todo o seu património ambiental, paisagístico e cultural é fruto do trabalho do homem, que o foi moldando através dos séculos, para sobreviver e melhorar as suas condições de vida. O que já não podemos aceitar é que nos tentem impingir essa visão como sendo o paradigma do futuro; e, pior ainda, que nos imponham uma agenda política e um programa de ação subsequentes, como sendo a única via para a salvação do planeta!

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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