“Lei da eutanásia”. Constitucional?

Uma lei não será forçosamente inconstitucional por descriminalizar a eutanásia; mas sê-lo-á seguramente se desatender estas exigências. Pecado em que o diploma incorre a vários títulos, veniais uns, capitais outros.

1. Saí do Tribunal Constitucional antes de ali ter entrado o pedido de fiscalização preventiva da solvabilidade constitucional do Decreto relativo à “antecipação da morte medicamente assistida” (a “lei da eutanásia”).

Segundo o princípio republicano, ao deixar o Tribunal, deixei todas as marcas (de estatuto, privilégio, carisma, auctoritas, obrigações e direitos, condição material …) inerentes à função. Ter sido juiz é hoje, para mim, um gratificante lugar de memória duma missão que quis cumprir sem mácula. Com a vantagem inestimável da recuperação, sem sombras nem reservas, da liberdade e das liberdades, nomeadamente da liberdade de participação nos debates que alvoroçam a opinião pública e abalam o consciente colectivo. Particularmente dos que se situam ao nível do sentido existencial da própria vida. Mesmo que se fale da vida, dizendo a morte.

2. A benefício de clarificação, dois enunciados que definem o horizonte e as premissas do discurso.

a) Em primeiro lugar, não se trata de discutir as questões à luz de representações transcendentes, pedidas às teodiceias, à teologia, à moral, às mundividências ideológicas ou às escolas filosóficas. Breviter, não se trata de religião, mas de direito, sistema normativo imanente à sociedade democrática, secularizada e plural. A ninguém assistindo a legitimidade para pretender alinhar a discussão pelas suas convicções religiosas, menos ainda para pretender vergá-la ao peso dos seus credos. Inversamente, ninguém pode renunciar ao debate a pretexto de não querer perturbá-lo com aquelas convicções. Bastará pôr entre parênteses artigos de fé e luzes da revelação e transpor os pórticos do direito. Particularmente do direito constitucional, que proclama a vida como inviolável; e do direito criminal, que erige a vida em estrela maior da constelação dos bens jurídicos e ergue à sua volta uma muralha de incriminações, armadas com as mais drásticas sanções. Porque a vida é a instituição radical e infungível da sociedade… enquanto não formos todos substituídos por artefactos de inteligência artificial.

b) Em segundo lugar, as questões jurídicas da eutanásia — criminalização/descriminalização — são, em primeira linha, problemas de direito ordinário. Cabe à Constituição reconhecer os valores, deferindo — e impondo — ao legislador ordinário o dever de assegurar a sua protecção, elegendo os instrumentos idóneos e necessários a uma tutela ajustada. Na formulação académica, não há imperativos constitucionais, materiais ou implícitos, de criminalização, seja qual for a eminência do bem jurídico a tutelar.

Assim, nada permite antecipar que uma lei de descriminalização da eutanásia seja, necessariamente e sem mais, inconstitucional. Tudo está em saber se ela satisfaz as exigências materiais e formais de que a Constituição faz depender a validade das normas de criminalização/descriminalização. Em definitivo, uma lei não será forçosamente inconstitucional por descriminalizar a eutanásia; mas sê-lo-á seguramente se desatender aquelas exigências. Pecado em que o diploma incorre a vários títulos, veniais uns, capitais outros.

3. A lei assenta numa contradição ao nível dos fundamentos teóricos ou filosóficos. Por um lado, e embora com algumas e significativas incongruências, ela parece alinhada com o modelo tradicional de enquadramento jurídico da eutanásia. Que associava as soluções de descriminalização/despenalização a estados qualificados de sofrimento em estádios de aproximação imediata e irreversível à morte. A morte medicamente assistida valia como resposta subsidiária (em relação a meios de superação da dor) para assegurar a “dignidade na morte”.

Quem, porém, acompanhou o debate parlamentar terá ouvido também o argumento de que não existe dever jurídico de viver. Afirmação que releva de uma impostação antropológica e filosófica distinta e aponta outro paradigma normativo, em muitos aspectos irreconciliável. Um paradigma a que presta tributo a decisão recente do Tribunal Constitucional alemão em matéria de auxílio ao suicídio. Que sustenta o “direito a uma morte autodeterminada”, um (novo) direito fundamental, que emerge como expressão directa da autonomia e da dignidade e espelha o sentido existencial da vida. E cujo exercício não depende de qualquer pressuposto material — estado de sofrimento e/ou proximidade da morte. Podendo ser exercido em “qualquer fase da vida”, em estado de felicidade/infelicidade, saúde/doença, euforia/frustração e à margem de quaisquer living standards (Amartya Sen). Até porque a intervenção de uma racionalidade objectiva —vg., a exigência de “sofrimento intolerável” — introduziria um ilegítimo momento de paternalismo e heteronomia, subjectivizado pelos médicos.

Ainda em sede de apreciação geral, avulta o que parece ser outro e comprometedor vício: a parificação categorial e normativa, entre eutanásia e auxílio ao suicídio. Ambas reconduzidas ao mesmo conceito (“antecipação da morte medicamente assistida”) e submetidos ao mesmo regime (“a conduta não é punível quando realizada no cumprimento das condições estabelecidas na lei xxx”). Além de desatender as diferenças entre as diversas formas de eutanásia (directa/indirecta; activa/passiva), a lei esquece as diferenças entre eutanásia e suicídio. Este esgota os efeitos no sistema pessoal, autorreferente e improgramável. Diferentemente, a eutanásia, causação da morte de outra pessoa, configura um evento, fenómeno ou processo que tem lugar no — e pertence ao — sistema social. Que pode projectar sobre ele os seus critérios e juízos normativos.

4. Atendo-me, por razões de utilidade imediata, à linha de problematização do pedido, não curarei dos problemas de índole substantiva suscitados pela eutanásia em si, na sua compreensão axiológica e desdobramento normativo. Privilegiando os vícios que atingem as normas, particularmente do ponto de vista da indeterminabilidade. Vícios aparentemente formais, mas que trazem consigo dirimentes coeficientes de danosidade, como atentados aos direitos fundamentais, à autonomia, à dignidade e à igualdade. Logo porque, ao cometer aos médicos o preenchimento dos vazios e silêncios e a fixação dos sentidos, a lei introduz contingência e variabilidade e sacrifica a autonomia do paciente.

Neste plano, não creio que possa fundadamente questionar-se a pertinência das questões levantadas pelo pedido nem a plausibilidade da argumentação a que se acolhe.

5. Mesmo atendo-me à linha do pedido, sempre será possível ir mais longe, alargando e aprofundando a problematização e a crítica, referenciando outros marcadores de indeterminação e de crise de constitucionalidade.

Questionável, por exemplo, o conceito nuclear, “antecipação da morte medicamente assistida”, que no articulado substitui o conceito de “morte medicamente assistida”, que dá nome à lei. O que, longe de ser irrelevante, aponta para impostações filosófico-antropológicas e para quadros normativos dissonantes.

A optar-se pelo conceito de antecipação (da morte), impunha-se uma definição que lhe demarcasse o sentido e os limites. Não bastando a definição ensaiada pela lei, tautológica e assente em círculo vicioso. Que define a antecipação da morte medicamente assistida e não punível como “a que ocorre (…) por decisão (…) em situação de sofrimento…”. Ou seja: a antecipação da morte é a antecipação da morte acompanhada das circunstâncias x e y, que adjectivam o substantivo (antecipação), dando o seu significado como adquirido e evidente. Falta a determinação do alcance da antecipação, conceito intrinsecamente relacional: antecipação a quê e em que medida? Que distância — de tempo e de vivência — pode mediar entre o momento da morte antecipada e o momento em que hipoteticamente ocorreria a morte, caso o fio da vida não fosse entretanto cortado? A antecipação tem de situar-se já dentro do processo que corre directa e irreversivelmente para a morte, ou pode ocorrer antes — muito antes? — em qualquer fase da vida, quando, apesar da doença ou das lesões, não se perspectiva ainda a hora nem o dia? Mais: esta relação cronológica vale, nos mesmos termos e medida, para a eutanásia e o auxílio ao suicídio?

Considerações idênticas poderiam tecer-se sobre o “sofrimento intolerável”. Não para recuperar as aporias epistemológicas centradas sobre o adjectivo (“intolerável”) e sinalizadas pelo pedido. Mas para apontar outras, que ficam a descoberto se o exame se voltar para o substantivo (“sofrimento”). A começar, não se afiguram unívocos o significado e a função normológicas do “sofrimento intolerável”. Vale como critério autónomo e suficiente para, preenchendo a hipótese normativa, justificar a antecipação da morte? Ou, pelo contrário, a sua relevância está incindivelmente associada aos momentos seguintes — “lesão definitiva e de gravidade extrema” ou, em alternativa, “doença incurável e fatal” — e, como tal, dependente da existência de qualquer deles? Pergunta cuja resposta, não sendo linear, está longe de ser ociosa.

A ser pertinente a primeira, será bastante o sofrimento psíquico, resultante de uma frustração (sentimental, profissional…) irreversível e com um impacto tão profundo e demolidor que a vida deixa de ter sentido e sobra apenas a vontade de morrer?

A prevalecer a segunda, que parece mais consentânea com uma leitura integrada do diploma: quid inde se o intolerável sofrimento psicológico está associado a uma “lesão definitiva de gravidade extrema”? Poderá antecipar-se a morte do desportista de elite que, perdendo as pernas num acidente, arrasta o sofrimento intolerável da perda irreversível do único modo de vida que dava sentido à sua existência e quer, decididamente, morrer?

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