A crise da investigação clínica nos hospitais públicos

Temos nós capital humano e científico em abundância e qualidade para promover investigação clínica de excelência? Claro que temos e das melhores, está é subaproveitada e encolhida.

É certo e sabido, atrevo-me a dizê-lo desta maneira, que o funcionamento atual dos hospitais públicos não está talhado para o desenvolvimento da investigação clínica. Dois fatores preponderantes influenciam esta crise. O primeiro fator é a falta permanente de recursos. O segundo grande determinante é a índole rentista de uma mentalidade de curto prazo que encheu os hospitais públicos.

A falta de recursos reveste-se de dois aspetos: a falta de recursos materiais e a ausência de recursos intangíveis.

A falta de recursos materiais adquire singular importância em dois aspetos principais. Primeiro, nas situações em que os projetos de investigação demandam uma quantidade significativa de meios técnicos materiais e tecnológicos, esta falta é particularmente evidente. O segundo aspeto alude à paucidade de meios materiais inovadores e, por isso mesmo, mais caros (tecnologia, p.ex., incluindo hardware e software novos) que só nos grandes centros podem ser encontrados, centros esses que, maioritariamente, encontram-se sediados além-fronteiras. Aquém-fronteiras, a existir, são os investidores privados os pioneiros na sua aquisição. Um exemplo modelar é a robotização da cirurgia. Muito do conhecimento é importado do estrangeiro, conquanto conte apenas para nos resignarmos do atraso em que nos encontramos. Investimentos neste tipo de tecnologias e inovação implicam mentalidade a longo prazo e filosofia de saúde, algo que não é compaginável com lógicas de mercearia rentista.

A ausência, ou pelo menos a pouquidade, de recursos intangíveis prende-se com uma cultura devoradora da verve investigacional e da curiosidade científica como motores criativos e animosos da descoberta. Neste tipo de ativos, integram a vontade das direções em promover a investigação, o reforço na formação em áreas de investigação clínica, a qualidade das relações sociais nos serviços ou departamentos hospitalares, os canais de comunicação entre os diversos serviços com a criação de verdadeiros “centros cosmopolitas” dentro dos hospitais em que as mais variegadas áreas dialogam na construção de sinergias, no desenvolvimento de organizações que desburocratizem e descomplexifiquem processos muitíssimo complicados na reificação de projetos científicos de proa.

É neste ponto que a diminuição da hierarquização, ou do seu valor nominal ou atribuído, é preeminente na corroboração da confiança e do capital social no caminho certo para derrubar uma feudalização dos serviços hospitalares no que à investigação clínica diz respeito. O que quer isto dizer, na pática? Quer tão somente ilustrar as situações em que superiores hierárquicos são signatários de papers nos quais o seu contributo único foi a adição do seu nome, sem uma gota de suor pingarem numa mera revisão do trabalho escrito. Muitos não conhecem o tema dos textos que assinam. A co-autoria destes senadores serve como desbloqueio da submissão de artigos às revistas científicas. São assinaturas que funcionam como fatores limitantes na publicação do paper.

Outro aspeto importante refere-se ao dirigismo central dos hospitais que tem o efeito de congelar o fluxo de novas ideias provenientes dos meios técnicos e respetivas direções de serviço, com falência dos mecanismos sinérgicos em potência que, apenas sujeitos a uma pressão do real, poderão desencadear um processo de sobrevivência darwiniana com melhoramento progressivo dos serviços de saúde públicos.

Em Portugal, verifica-se cada vez mais uma relegação da investigação clínica ao âmbito dos internatos médicos em detrimento do investimento em projetos inovadores e de desenvolvimento. Mas, afinal, projetos inovadores não são conciliáveis com o internato médico? Depende do ponto de vista. Se considerarmos que nos internatos médicos se valorizam mais os currículos com uma boa quantidade de trabalhos de investigação com sacrifício da qualidade dos mesmos, então não são conciliáveis. Se considerarmos que os médicos internos, solitários no curso dos seus trabalhos de investigação, se vêm desprovidos de suporte intelectual e social, de formação, dos tais ativos intangíveis, então não são conciliáveis. Se tivermos em linha de conta que o grosso dos trabalhos desenvolvidos durante o internato médico carece de originalidade e de inovação, também não são conciliáveis. Costumo dizer que são trabalhos de casuística dos serviços, sem grande coisa de inovador. Se se continuar a enveredar na implementação de trabalhos sem caucionar a componente social, de equipa, tão importante nestas coisas, então continuam a ser inconciliáveis.

Mais, o frenesim em que um médico interno se enreda para a realização de trabalhos científicos acarreta o grande risco de distorção de dados, quer seja na sua recolha, no seu tratamento e posterior análise com irremediável deturpação dos resultados. Se trabalhos bem feitos neste ponto, ou seja, no processamento dos dados e etc., não for conforme aos resultados da literatura científica, ai meu Deus, alguém me acude que isto é um “ai Jesus”. Questionar o porquê de os resultados obtidos divergirem da média referencial da literatura? Essa agora! Não, que a investigação nos internatos não serve para pensar.

Depois, o espírito da não-inscrição dos trabalhos a curto prazo, pelo esquecimento fatídico a que são votados, contribui sobremaneira para que estes não sirvam para aprimorar práticas clínicas nos serviços, nem para reformular os protocolos vigentes ou renovar modelos de organização que permitam obter melhores resultados para os doentes. Acredite o leitor que as reformas são inspiradas em trabalhos de investigação de grande qualidade produzidos por outros. Nesse aspeto, somos bons no aproveitamento das externalidades, ou seja, naquilo que os outros produzem.

Temos então nós capital humano e científico em abundância e qualidade para promover investigação clínica de excelência? Claro que temos e das melhores, está é subaproveitada e encolhida.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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