Amnistias fiscais não beneficiaram “só as grandes fortunas”

Fisco está a fazer uma análise sobre a distribuição dos beneficiários dos regimes de regularização tributária pelo nível de rendimento e património.

Foto
O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, foi ouvido nesta quarta-feira no Parlamento LUSA/MANUEL DE ALMEIDA

Depois de ter apresentado ao Parlamento um relatório preliminar sobre as controversas amnistias fiscais lançadas pelos Governos de José Sócrates e Pedro Passos Coelho, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) continua a trabalhar na informação que lhe foi enviada pelo Banco de Portugal sobre os cidadãos que, em 2005, 2010 e 2012 aderiram aos regimes de regularização tributária (RERT) e está a fazer uma “análise mais fina” sobre a distribuição dos 3600 contribuintes em causa pelo escalão de rendimento e património.

A confirmação foi dada na Assembleia da República pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, que foi ouvido nesta quarta-feira a pedido do PCP sobre o relatório que o fisco enviou ao Parlamento em Fevereiro.

O secretário de Estado afirmou que as pessoas que aderiram às três amnistias não são se cingem a cidadãos acompanhados pela Unidade dos Grandes Contribuintes. “Não são só as grandes fortunas que estão nestes regimes”, disse o governante, dando como exemplo o caso dos “pequenos aforradores emigrantes”, que, embora não representem o “grosso da coluna”, foram algumas das situações encontradas pelo fisco.

Embora o relatório não destrince o universo dos amnistiados pelos escalões de rendimento e património, o documento permite verificar que, dos cerca de 3600 aderentes, 188 são grandes contribuintes (ou seja, pessoas com mais de 750 mil euros de rendimento anual ou um património imobiliário ou financeiro superior a cinco milhões de euros). Falta saber qual a capacidade contribuinte dos restantes e é esse trabalho que o fisco tem em mãos.

O deputado do PCP Duarte Alves pediu mais informação sobre essa distribuição e sobre a diferença entre a cobrança dos RERT e o que resultaria do imposto devido à taxa normal. Uma das questões que o Governo considera ser importante analisar é qual “o valor da riqueza” das pessoas que colocaram dinheiro fora de Portugal. “Essa análise mais fina sobre o que é que cada um tinha em termos de valores é um dado relevante”, concordou o secretário de Estado Adjunto do ministro das Finanças João Leão.

Ao todo, os RERT contaram com 3837 adesões (3814 singulares, 20 heranças indivisas e três empresas). No entanto, como alguns aderiram a mais do que um regime, o número exacto de amnistiados é de 3592, segundo esclareceu ao PÚBLICO o Ministério das Finanças.

Apesar de os regimes serem de 2005, 2010 e 2012, só em 2019 é que a administração fiscal passou a ter a lista dos contribuintes que tinham ocultado ao fisco dinheiro colocado no estrangeiro e aproveitaram os RERT para regularizar cerca de 6000 milhões de euros pagando taxas de regularização de 2,5%, 5% ou 7,5% (consoante o caso) e puderam ficar a salvo de infracções criminais.

O relatório permite verificar que os 188 grandes contribuintes legalizaram 853 milhões de euros (14% do total).

“Valeu a pena?”

O secretário de Estado disse que “estes regimes, apesar de serem de regularização tributária, passaram totalmente à margem da administração fiscal”, porque, pela lei, o processo de declaração e pagamento acontecia junto do Banco de Portugal, com a intervenção dos bancos comerciais.

PÚBLICO -
Aumentar

Apenas em 2019, com a entrada em vigor do Orçamento do Estado, é que o supervisor bancário e os bancos comerciais foram obrigados a transmitir essas declarações à AT — o banco central cumpriu a lei, mas, do lado dos bancos, só uma entre 25 instituições o fizeram, o que vai levar o fisco a fazer uma participação ao supervisor.

O secretário de Estado disse que a AT tinha dois anos para derrogar o sigilo bancário relativamente aos contribuintes em causa e disse que esse período acabou no dia 24 de Fevereiro, estando previsto que o fisco elabore um “anexo” para o relatório de combate à fraude e evasão fiscal, para completar o relatório preliminar que foi enviado ao Parlamento.

As leis dos RERT estabeleceram, através de redacções semelhantes, que uma declaração não poderia “ser, por qualquer modo, utilizada como indício ou elemento relevante para efeitos de qualquer procedimento tributário”, penal ou contra-ordenacional, e que os bancos deveriam assegurar o sigilo sobre a informação prestada pelos clientes. E a norma que permitiu ao fisco ficar a conhecer a informação dantes guardadas no Banco de Portugal salvaguarda que esse acesso “não afecta a extinção das obrigações tributárias e a exclusão da responsabilidade por infracções tributárias que resulte da aplicação dos RERT”.

O secretário de Estado disse estar convencido de que “nenhum dos três governos que decidiu fazer este instrumento o fez com gosto, independentemente de ser um Governo socialista ou do PSD”, justificando que os três RERT avançaram num contexto diferente, em que “havia uma necessidade de repatriamento de capitais e numa altura em que a troca de informações não estava desenvolvida como hoje”. E de seguida interrogou-se: “Valeu a pena? A minha resposta continua a ser ‘não’. Mas aquilo que devemos aprender com os erros é exactamente a não os repetir”.

Agora, disse, o acesso da AT às declarações permite-lhe ter um maior conhecimento “sobre a forma como este tipo de contribuintes age para defraudar a lei” e ser um instrumento de “combate ao planeamento fiscal agressivo ou abusivo”.

Receita e repatriamento

A deputada do BE Mariana Mortágua, que se referiu aos RERT como “lavandarias fiscais legais”, contestou a visão de avaliar uma decisão política em função de um sentimento de adesão. “Não estamos numa avaliação sobre se as políticas são feitas por gosto ou sem gosto. Os ministros e os Governos tomam decisões políticas. E têm que acatar com as suas consequências”, contrapôs, afirmando ter dúvidas de que “qualquer ministro, em pleno século XXI, integrado na zona euro, tome uma decisão de um RERT por causa da balança de pagamentos”.

PÚBLICO -
Aumentar

“A teoria de que a crise justifica os RERT parece-me mal argumentada”, disse, lembrando que o último RERT não obrigava os amnistiados a colocarem os capitais regularizados em território português.

A deputada do CDS-PP Cecília Meireles defendeu que, sem estes instrumentos, “a esmagadora maioria destes montantes não tinha aparecido, [os valores] não tinham sido regularizados e o montante da receita fiscal tinha sido zero ou próximo de zero”. “É obvio que a filosofia política que subjaz [aos três regimes] é a mesma: são regimes excepcionais. O objectivo também parece obvio, independentemente das visões conspirativas: o objectivo é, no momento de crise, aceder quer a receita fiscal, quer a capitais. É tão cru e tão óbvio quanto isto”, afirmou a deputada centrista.

O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais deixou uma garantia: a de que um novo regime excepcional não se repetirá. “Hoje, seria impensável” lançar um RERT, disse.

Sugerir correcção
Comentar