Ficcionistas e jornalistas de esterco

Sem ser nos textos, fujo com o rabo à seringa, evito o confronto com o espelho. Vou-me deixando andar ao sabor da maré, como diz o Palma, “entre a bebedeira e o comprimido, dizendo sim à engrenagem, ando muito deprimido”.

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Roman Kraft/Unsplash

A mãe de um amigo disse-lhe que eu era corajosa. “Diz lá à tua amiga que eu acho que é corajosa.” Devia soar a elogio, se fosse verdade, mas não é. Sou mais medricas do que uma criança pequena deixada no escuro do quarto – ainda vejo monstros nos casacos pendurados atrás das portas. A mãe deste amigo não me conhece; lê os meus textos e baralha o sujeito enunciador com a autora. Eu não sou a pessoa dos meus contos, pelo menos não de todos. Acontece, às vezes, os leitores e as leitoras terem dificuldade em distinguir; basta que os textos estejam na primeira pessoa e que pareçam verosímeis, dada a biografia pública, e logo concluem estar perante uma confidência. Se lessem com atenção saberiam que não era possível eu ser anorética e enfarta-brutos, estudante de economia e médica, lésbica e devoradora de cavalheiros, algo pudica e bastante puta, entre muitas outras disparidades, tudo em simultâneo.

Fiquei a pensar porque será que a voz que se expressa através dos textos é mais corajosa do que a minha voz, tantas vezes entrevada na garganta, cheia de miúfa de verbalizar aquilo que penso e que me assusta. Não que seja uma florzinha de estufa, até me considero um bocado grosseira e sem freio na língua, mas isto manifesta-se na direcção do outro, nunca de mim própria. Sem ser nos textos, fujo com o rabo à seringa, evito o confronto com o espelho. Vou-me deixando andar ao sabor da maré, como diz o Palma, “entre a bebedeira e o comprimido, dizendo sim à engrenagem, ando muito deprimido”.

Não estou deprimida e não sou bezanas, cá está, não interpretem tudo à letra. Isto são contos, não páginas diarísticas; a minha vidinha não interessa para nada, nem a ninguém. Não faço dos textos informação que possa vir a ser usada nas revistas cor-de-rosa, nem sequer entendo porque lhes chamam cor-de-rosa, aquilo devia ser intitulado imprensa castanha, cor do cocó, cor do esterco que não interessa a ninguém. As pessoas que trabalham nessas revistas, por exemplo, podem achar-se honestas e corajosas. Publicam, muitas vezes, coisas que são verdade (outras, inventadas) e íntimas, que não deveriam sair da esfera privada. Devem sentir-se uma espécie de justiceiros que levam ao povo alguns segredos.

Já passei por isso, sei bem o que custa espetarem com a nossa fronha na capa de uma revista, com parangonas escandalosas. A mais recente foi terem feito de mim grávida de gémeos. Quem me conhece sabe que é mentira. Nunca engravidei, e as únicas coisas que me lembro de ter em pares, além das mamas, são as peúgas e dois peixinhos vermelhos às voltas num aquário na sala. Inventaram e não desmentiram. Mas se calhar fizeram bem. Até somos mais parecidos do que aquilo que à partida se pode pensar — os ficcionistas e os jornalistas de esterco —, partilhamos com o mundo os segredos dos outros, reais ou inventados. E isto não é nada corajoso, mãe do tal amigo, é até bastante cobardolas.

P.S. — Ficcionistas deste país, não se sintam atacados. Estou do vosso lado. Não concordo com uma única palavra do texto acima escrito.

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