Há paredes na Batalha que contam a história das suas aldeias

Cinco jovens criaram o projecto Aldeia Pintada, responsável por cinco intervenções de arte urbana no concelho da Batalha. Os jovens querem fazer bater novamente o coração da localidade. Para isso, estudam o património e tornam-no visitável e visível.

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LUSA/PAULO CUNHA

Num coração vermelho gigante, pintado na parede de uma casa na Torre, concelho da Batalha, habita parte de uma cantiga popular registada para a posteridade por um grupo de jovens que quer fazer bater novamente o coração da aldeia.

O mural, onde se lê “Os pratos na cantareira estão sempre ‘tlim tlim'/Assim está o meu amor quando está ao pé de mim”, exactamente o que cantavam as resineiras que, depois de um dia de trabalho, se faziam ao caminho para o regresso à aldeia, é uma das cinco intervenções de arte urbana já realizadas no âmbito do projecto Aldeia Pintada, que junta cinco jovens.

Mariana Menezes, de 22 anos, professora de desporto, o músico Filipe Cordeiro e a museóloga Eva Vieira, ambos de 24 anos, Sandra Pereira, que trabalha na área do audiovisual, e o arquitecto Diogo Monteiro, os dois com 32 anos, são os responsáveis do projecto cuja ideia nasceu em ambiente familiar. Do grupo, apenas Filipe Cordeiro não mora na Torre, mas na vizinha Cortes, no concelho de Leiria.

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“Em almoços e jantares de família, falávamos com os mais velhos que nos iam contando histórias sobre a aldeia, lendas, tradições, pessoas de antigamente conhecidas. Isso foi-nos despertando interesse sobre o património cultural da Torre e pensámos como é que podíamos tornar esse património visitável e visível, e, principalmente, preservá-lo, para não se perder”, afirmou Eva Vieira, prima de Sandra e Mariana.

A ideia, com cerca de dois anos, encontrou na pandemia de covid-19 um empurrão, quando o grupo teve “mais tempo livre” para tentar perceber como poderia executar o projecto, que primeiro passou por consultar bibliografia e documentar, por escrito e em vídeo, histórias, lendas, cantares, vivências, poesia, usos e costumes ou tradições e até património construído já desaparecido.

“Vamos tentando ‘guardar’ esses locais no acervo, para depois também podermos fazer intervenções que o possam ‘trazer’ de novo”, referiu Eva Vieira. “Gosto de pensar nisto como estarmos a cozinhar um bolo e irmos buscar os ingredientes à aldeia”, disse Diogo Monteiro, explicando que o arquivo, para já utilizado pelo projecto, poderá no futuro ser disponibilizado a outras pessoas.

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Depois, com a constatação de que havia na aldeia “casas abandonadas, fachadas feias e velhas”, o pensamento seguinte foi que “se calhar seria interessante projectar isto para as casas, para os muros”. “Queríamos que este projecto também fosse para as pessoas daqui e, ao mesmo tempo, que as pessoas daqui se cruzassem” na rua com ele, para já com as pinturas, salientou Diogo Monteiro.

A primeira intervenção surgiu em Setembro de 2020, na casa de Sandra Pereira. “Começámos por fazer lá porque estávamos com receio da recepção das pessoas”, comentou, sendo que o mural é sobre a serra da Barrosinha: “Fomos à Barrosinha/Juntinhos a passear/O tempo arrefeceu/Tivemos de voltar”.

“[A reacção] tem sido positiva, as pessoas têm gostado”, assegurou Filipe Cordeiro. Mariana Menezes acrescentou que até há quem pergunte ao grupo: “Só vão pintar esta [parede]?”.

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Quando o grupo decidiu fazer um mural junto ao túnel que permite a passagem pedonal debaixo do Itinerário Complementar 9, colocando no meio daquele um chocalho, para lembrar a desaparecida tradição da quaresma “Serração das velhas”, foi logo de imediato avisado de que poderia desaparecer.

Não desistiram, mas acrescentaram um aviso: de um lado do túnel a pintura dá “10 anos de sorte a quem o chocalho tocar"; do outro “10 anos de azar a quem o chocalho roubar”. E quando o cordel para bater o chocalho desapareceu, logo alguém da pequena comunidade, que não terá mais de meio milhar de habitantes, foi colocar outro.

“Nota-se que há uma preocupação [em cuidar] e isso torna a aldeia um bocadinho mais ligada entre os habitantes”, declarou Eva Vieira sobre a Torre, que, no passado, se chamava Torre da Magueixa, designação que o projecto já resgatou, assim como quer resgatar o bairrismo de outros tempos, que “se foi perdendo à medida que as pessoas foram tomando outros rumos”, o mesmo é dizer escolher outros destinos, em Portugal ou no estrangeiro.

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Este é um projecto “para a aldeia”, mas também para quem não a conhece, por isso disponível no Facebook e Instagram, a pensar igualmente nos emigrantes, disponibilizando relatos em vídeo para “completar as intervenções” de arte urbana.

Entre os desejos do grupo está, por exemplo, a gravação de um CD com cantigas, exemplificou Filipe Cordeiro, acrescentando a possibilidade de levar à aldeia exposições e outras artes e artistas. “Na descrição do nosso projecto, dizemos que a maior parte das intervenções está ligada à aldeia, mas também pode haver intervenções para lhe dar vida”, sintetizou Eva Vieira.

Tudo para que o coração da Torre não pare de bater e para que Aldeia Pintada continue a falar ao coração de quem lá vive. “Gosto [de coração], sim”, afirmou sobre “Aldeia Pintada” Maria Vieira Rodrigues ou “Maria Saramaga”, como é conhecida a mulher de 86 anos, que também já relatou poemas, lendas e histórias da Torre ao projecto, que, em tempos de pandemia, “aproxima pessoas de outra forma”, num tempo em que a regra é o distanciamento.

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