A agenda (escondida) do Governo para o Plano de Recuperação e Resiliência

Porque é que o Governo insiste em cristalizar a macrocefalia metropolitana, em vez de promover o reequilíbrio e a coesão territorial? Talvez a única resposta plausível possa ser encontrada na geografia da população (e dos votantes) e no calculismo eleitoralista do Governo.

1. O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) está de volta. Agora numa versão recauchutada e aumentada, mas ainda assim incompleta, submetida a uma rapidíssima consulta pública, de 15 de Fevereiro a 1 de Março, conforme exigido por Bruxelas. E sem grandes novidades relativamente ao primeiro esboço conhecido em Outubro passado: a mesma falta de visão estratégica, de ambição reformista, de matriz territorial, de objectivos específicos, de metas quantificáveis ou avaliações de impacto e de custo-benefício. Apenas - e só - uma listagem avulsa e inconsistente de “investimentos” e projectos acondicionados em três grandes embrulhos, rotulados com os hastags da moda: resiliência, transição climática, transição digital. O Governo continua animado por um estranho pensamento mágico, acreditando piamente que a recuperação económica e a resolução dos problemas estruturais do país – baixas produtividade e competitividade, fracas qualificações, desigualdades sociais e territoriais, etc. – decorrerão, mecanicamente, da velha fórmula do “atirar dinheiro para cima dos problemas”. Ou, talvez, a agenda do Governo seja outra. Uma agenda marcada pelo imediatismo e o eleitoralismo tão caros ao primeiro-ministro e indiferente aos bloqueios e desafios que o país tem pela frente.

2. A primeira grande prioridade da agenda do Governo para o PRR é a de “gastar depressa”. Os dados da equação são conhecidos: o país terá ao seu dispor, entre 2021 e 2030, cerca de 50 a 60 mil milhões de euros, o que representa 25 a 30% do PIB nacional de 2020. Ora, só no caso do PRR (14 mil milhões de euros), 70 % dos fundos não reembolsáveis deverão estar comprometidos até 31 de Dezembro de 2022 e os restantes 30% até ao final de 2023. Se assim não acontecer, Portugal perderá uma boa parte dos fundos que lhe foram alocados. Perante as eventuais dificuldades de aplicar estes recursos, o Governo privilegiou a despesa fácil e célere: compras públicas, encargos com pessoal, despesas de funcionamento, vouchers e afins, acções de capacitação e formação, construção civil e obras públicas, etc. Na generalidade dos casos, sem qualquer condição prévia de eficiência ou de metas a alcançar, o que nos leva a concluir que os resultados não entram nem contam nesta equação. Teria sido possível fazer diferente? Sim, sem dúvida. Mas substituir a despesa corrente por investimento reprodutivo pressupõe um grande esforço de planeamento e de programação que colide com o modo de navegação à vista deste Governo e a sua crença inabalável nas injecções de liquidez e no consumo vitaminado, público e privado, como fármaco miraculoso para debelar as crises e estimular o crescimento económico.

3. Gastar depressa, mas em que sectores e domínios? Face ao dilema do mais Estado ou mais economia o governo escolheu a primeira alternativa. Cerca de 65% dos recursos do PRR serão alocados ao sector público e apenas 35% ao sector privado. As razões são, naturalmente, ideológicas, mas também utilitárias. Os fundos europeus permitirão aliviar a pressão sobre a dívida e o défice e repor o investimento travado pelos cortes e cativações dos últimos anos. Sob a capa das proclamadas “reformas”, o PRR pagará a factura dos encargos com novos funcionários públicos, o reequipamento dos serviços e a digitalização da Administração Pública. E custeará ainda, o amontoado de projectos retirados das gavetas dos ministérios (da saúde, da solidariedade, da educação, das infra-estruturas, da agricultura e do ambiente), num valor superior a 5500 milhões de euros, que aí jaziam à espera de uma oportunidade para ver a luz do dia. Embora nunca o tenha confessado abertamente, talvez por temor aos demónios da herança “socrática”, o Governo tem uma fé inabalável no papel da construção civil e das obras públicas de motor da recuperação e do relançamento económico. Só assim se explica a relativa indiferença aos problemas e desafios imediatos das empresas e actividades mais abaladas pela crise, a começar pelo turismo, a marginalização dos sectores produtores de bens transaccionáveis ou a desvalorização da internacionalização e das exportações como prioridade e desígnio nacional. Nada disto parece ser relevante ou prioritário na agenda do Governo.

4. Gastar depressa, maioritariamente no sector público e preferencialmente nas áreas metropolitanas. O Governo despojou o PRR de qualquer visão ou matriz espacial coerente e consistente, ou seja, nacional, e de qualquer ambição de coesão territorial. Na agenda do Governo para o PRR o território não entra nem conta. Ou, melhor, só entram e contam algumas parcelas desse território. As áreas metropolitanas de Lisboa e Porto foram contempladas, para a construção de habitação e a expansão das redes de metro, com 2187 milhões de euros, mais do que os 1989 milhões de euros que serão investidos nas infra-estruturas, florestas e gestão hídrica em todo o país. O que diz bem do lugar que a coesão territorial ocupa nas prioridades do PRR e do Governo. Ora, as assimetrias territoriais são um travão à competitividade e à sustentabilidade e uma ameaça séria à coesão nacional. Em 2018, quase 82% da população do continente residia a menos de 50 km da costa e 45% nas 2 áreas metropolitanas. E a pandemia da covid-19 veio demonstrar não só os custos e os riscos desta concentração bipolar, mas também o carácter central do “território” na construção de um país mais seguro, sustentável e resiliente. Porque é que o Governo insiste, então, em cristalizar a macrocefalia metropolitana, em vez de promover o reequilíbrio e a coesão territorial? Talvez a única resposta plausível possa ser encontrada na geografia da população (e dos votantes) e no calculismo eleitoralista do Governo. O que significa que, apesar da narrativa oficial, vamos acorrentar o princípio constitucional da igualdade de oportunidades a uma geografia e a uma contabilidade eleitoral.

5. A resposta à crise social e económica é uma oportunidade única para Portugal corrigir os seus défices estruturais e repensar o seu modelo de desenvolvimento. O PRR deveria ter um papel essencial nesse duplo desafio, contribuindo não só para resgatar o país da crise profunda em que vai mergulhando, mas também para cuidar do seu futuro. Mas, infelizmente, assim não é. As prioridades do Governo para resolver as suas equações políticas, conduziram a uma agenda (escondida) que ilude os problemas do país, contorna as dificuldades, persiste nos equívocos. Ora se o objectivo "não é regressar ao ponto em que estávamos em Fevereiro [de 2020]”, como afirma o primeiro-ministro, porque é que o PRR repete a mesma receita avulsa e de navegação à vista que nos trouxe até aqui? O PRR é mais do mesmo e, portanto, os resultados esperados não podem ser muito diferentes daqueles que já conhecemos: um país endividado, pouco competitivo e muito desigual. Será este o Portugal que queremos continuar a ter em 2030?

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