As cinco falésias

A convicção generalizada de que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), colocado recentemente a consulta pública, resolverá todos os problemas da Nação pode ser fatal para o futuro do país.

Nos últimos meses, as autoridades bancárias têm falado insistentemente do denominado “cliff effect” (“efeito falésia”) para designar o risco para o sistema bancário associado ao fim das moratórias de crédito em resultado da elevada probabilidade de muitos mutuários, por dificuldades económicas, não terem capacidade de retomar o pagamento do serviço da dívida.

Será que a semântica do conceito “efeito falésia” se circunscreve apenas à atividade bancária? Infelizmente, não. Na realidade, a generalidade dos países enfrenta este tipo de risco em diversas áreas e Portugal não é exceção.

Saúde Pública

Com a generalidade dos recursos afetos ao combate da pandemia, a grande maioria dos sistemas de saúde a nível mundial deixou para segundo plano o acompanhamento e tratamento de outras doenças. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), na fase mais inicial da pandemia, em 122 dos 163 países analisados, os serviços de doenças não transmissíveis foram interrompidos, sendo que, no caso específico da região europeia, um em cada três países tinha interrompido parcial ou completamente os serviços da área oncológica.

A título de exemplo, em Portugal registou-se uma queda de 16% nas consultas programadas nos cuidados de saúde primários (CSP) e de cerca de 25,5% no número de urgências.

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De igual forma, e tendo como referência estudos realizados no âmbito de confinamentos anteriores (i.e., SARS, MERS ou Ébola), sabemos que a quarentena pode originar um conjunto de sintomas psicopatológicos (i.e., humor deprimido, irritabilidade, ansiedade, medo, raiva, insónia), conduzindo, no médio e longo prazo, a um aumento das perturbações depressivas e das perturbações de stress pós-traumático.

Educação

Parece inquestionável que a redução da atividade escolar, em resultado da pandemia, trouxe prejuízos sérios para a formação dos alunos, sendo expectável que esses prejuízos trarão consequências económicas graves, quer para o futuro desta geração de estudantes, quer para os países como um todo.

Na realidade, e de acordo com um estudo recentemente publicado (setembro de 2020) pela OCDE, cada ano adicional de educação conduz, em média, a um aumento do rendimento anual ao longo da vida entre os 7,5% e os 10%.

Numa outra perspetiva, e assumindo que os alunos portugueses perderam até à data cerca de um terço de um ano letivo, podemos assumir que os atuais alunos, se nada for feito, terão uma queda média no rendimento futuro de cerca de 2,5% a 3% ao ano, o que corresponde, em termos de PIB atual, a cerca 69% (aproximadamente 140 mil milhões de euros), ou seja, mais de dez vezes o valor da “bazuca” europeia em subvenções dedicadas a Portugal. 

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Tecido empresarial  

Apesar das melhorias observadas na solidez financeira do tecido empresarial português nos últimos anos, o certo é que o impacto da pandemia em alguns dos setores de atividade inviabilizará a continuidade de um número significativo de empresas. Admitindo um impacto semelhante ao observado durante a última crise, quando a sinistralidade empresarial atingiu os 16% (2011), não é improvável que ao longo de 2021 possamos assistir à falência de mais de 200 mil empresas. 

Para além dos efeitos que o aumento da sinistralidade empresarial terá ao nível da produção e emprego, poderemos ainda ter um efeito de segunda ordem que corresponde ao risco de desestruturação dos clusters consolidados existentes, bem como à inviabilização dos protoclusters em ascensão (i.e., aeronáutica e engenharia espacial; automação e robótica industrial e móvel, etc.).

Na realidade, o desaparecimento de algumas empresas, num quadro de concorrência internacional pela captação de investimento, poderá originar uma deslocalização da produção (incluindo a de serviços turísticos!), a que acrescerá as já tradicionais dificuldades da economia portuguesa em reconhecer e, proativamente, tirar partido da tese schumpeteriana da “criação destruidora” (assumindo-se, por cá, apenas a componente “destruidora”).

Mercado de trabalho

Os dados relativos ao comportamento do mercado de trabalho em 2020 apresentam-se paradoxais. Com efeito, com uma queda histórica da atividade económica de 7,6% (em 6 abril de 2020, no artigo “E depois da covid?”, estimava uma queda de 7,5% no PIB), a taxa de desemprego desceu em dezembro de 2020, face ao período homólogo de 2019, de 6,7% para 6,5% (INE), mantendo-se em níveis mínimos dos últimos anos.

Ainda que “simpático”, este número é muito enganador. Com efeito, apesar de haver menos 13,7 mil desempregados do que em dezembro de 2019, existem mais 95,3 mil portugueses inativos (que não procuraram emprego nas quatro semanas anteriores ou que não estão disponíveis para trabalhar nas duas semanas subsequentes à data do inquérito), bem como mais 41,7 mil portugueses que, estando empregados, estão em situação de subemprego, a que poderemos acrescentar mais de 200 mil em situação de layoff. Daqui resulta um nível potencial de desempregados de cerca de 670 mil pessoas (e não de 331,1 mil, como dizem as estatísticas), fazendo elevar a taxa de desemprego “real” para valores próximos dos 13%.

Sistema bancário

De acordo com a informação disponível, com cerca de 22,2% dos créditos a empresas e particulares em situação de moratória (junho de 2020), Portugal é um dos países mais expostos ao risco inerente ao fim de um mecanismo que permitiu, ao longo dos últimos meses, aliviar a pressão de tesouraria sobre as empresas e, simultaneamente, evitar o crescimento da sinistralidade nas carteiras de créditos do sistema bancário.

A situação é particularmente preocupante ao nível das empresas, com cerca de 32% do crédito bancário em moratória (com e sem garantia pública), sendo que 12% do crédito, não estando em moratória, teve de ser “suportado” por uma garantia pública.

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A suspensão do mecanismo de moratórias, prevista parcialmente para março de 2021 e na globalidade para setembro de 2021, conjugada com níveis de recuperação económica modestos, poderá ter um efeito devastador sobre o sistema bancário, conforme resulta da leitura das estimativas da consultora Roland Berger, segundo a qual o denominado crédito “mal parado” poderá crescer em Portugal entre os 14 e os 21 mil milhões de euros (entre 30% e 40% do crédito em moratória). 

Epílogo

Enfim, a atual pandemia terá efeitos severos e prolongados em diversas áreas estruturantes da sociedade portuguesa. Os efeitos de médio e longo prazo na saúde, educação, mercado de trabalho, tecido empresarial e sistema bancário estão identificados e não podem ser ignorados.

A resposta a estes problemas não pode – nem deve – depender exclusivamente da vontade de um governo (qualquer que ele seja).

Neste contexto, a convicção generalizada de que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), colocado recentemente a consulta pública, resolverá todos os problemas da Nação pode ser fatal para o futuro do país.

Tal como no futebol, em que “as camisolas não ganham jogos”, também nesta matéria um PRR, por melhores intenções que tenha, não garantirá, só por si, o futuro coletivo dos portugueses partilhado num espaço de identidade viável e inclusivo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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