A bola e a pena

A existência de um conselho científico de especialistas de áreas diversas e com diversas visões daria a melhor garantia de que responderemos adequadamente à elevada incerteza gerada pela pandemia.

Num popular vídeo do YouTube, o físico Brian Cox mostra que uma bola de bowling e uma pena caiem à mesma velocidade no vácuo, ou seja, na ausência de resistência do ar. Apesar de se saber de antemão que esse seria o resultado da experiência, não deixa de ser impressionante e contra-intuitivo ver uma leve pena a cair de uma altura de dezenas de metros exactamente à mesma velocidade que uma pesada e densa bola de bowling. A lei da gravitação universal, descoberta por Isaac Newton, prevê com exactidão este resultado porque determina que a aceleração que um objecto sofre por acção da força gravítica de um planeta depende apenas da distância ao planeta e não de outras características do objecto. A resistência do ar, que faz a pena cair mais devagar em aparente contradição com esta lei, desaparece quando se faz a experiência no vácuo.

Em Física, é exequível fazer previsões muito precisas dos resultados de experiências como estas porque é possível separar os efeitos dos diversos factores. A recente descida da sonda Perseverance, em Marte, após percorrer quase 500 milhões de quilómetros, aconteceu no momento exacto que estava planeada, porque foi possível considerar separadamente as contribuições dos diversos factores que resultam dos efeitos das atmosferas e da atracção do Sol e dos planetas.

Lamentavelmente, esta separação de factores é muito mais difícil, ou mesmo impossível, noutras áreas, como as ciências sociais, a economia ou a medicina. Apesar dos esforços de milhões de cientistas, ainda não temos bons modelos para a pandemia de covid-19. É certo que, em tempo recorde, foi possível determinar a estrutura do vírus, a sequência do seu código genético, a forma de transmissão, os mecanismos de infecção e, com este conhecimento, criar vacinas eficazes.

Mas a transmissão do vírus de pessoa para pessoa depende de tantos factores que continuamos sem saber explicar muitos fenómenos. Por exemplo, não sabemos as verdadeiras razões porque é que a taxa de letalidade do vírus é muito menor que o previsto em dezenas de países de baixo rendimento per capita, como por exemplo o Bangladesh, Tailândia, Vietname, Índia ou Nigéria. Não sabemos se o fecho das escolas contribui ou não significativamente para parar a propagação do vírus, porque diferentes estudos chegam a conclusões diferentes ou mesmo opostas. Desconhecemos o nível de imunização que é necessário para atingir a imunidade de grupo, porque depende criticamente dos padrões de propagação. Nem sequer sabemos se os confinamentos são particularmente eficazes, face a estudos contraditórios. Ignoramos como é que as condições atmosféricas, a humidade, o nível de arejamento e de ocupação das casas, a temperatura e outros factores afectam a propagação do vírus. Não sabemos porque é que algumas pessoas, em algumas circunstâncias, são super-propagadores e infectam centenas de pessoas, enquanto outras parecem não propagar o vírus de forma significativa. Também não sabemos, exactamente, porque é que assistimos, em determinadas alturas, a uma rápida subida dos contágios, e noutras a uma rápida descida dos mesmos, como aconteceu no último mês não só em Portugal mas globalmente. Não sabemos sequer quais as características fisiológicas, genéticas e comportamentais que causam maior risco de infecção e, especialmente, maior risco de doença séria.

O leitor argumentará que conhecemos algumas condições que aumentam o risco de morte, como a idade ou a pré-existência de determinadas doenças. Mas, ao contrário da Física, onde é possível separar os diversos factores envolvidos, numa pandemia como esta não o conseguimos fazer. Cada pessoa é diferente, e o efeito do vírus depende fortemente destas diferenças. O nosso conhecimento dos mecanismos que o vírus usa para infligir a doença é ainda insuficiente, e passarão décadas antes que estudos controlados e aleatorizados permitam determinar com alguma certeza o efeito de diversos factores.

No que respeita à propagação do vírus, poder-se-á argumentar que existem modelos matemáticos que permitem modelar a propagação do vírus e a evolução da pandemia. Isso é verdade, mas estes modelos matemáticos simplificam a realidade e partem do princípio que é possível separar os diversos factores envolvidos. Os modelos mais comuns, denominados modelos compartimentais, dividem as pessoas em compartimentos, de acordo com o seu estado. O modelo mais simples, o SIRD, usa quatro categorias ou compartimentos: susceptível (S), infectado (I), recuperado (R) e morto (D). Sabendo que no princípio da epidemia cada pessoa infecta, em média, um certo número de outras pessoas (o agora famoso número básico de reprodução, R0) e o tempo que caracteriza as diversas fases da doença, é possível determinar, com bastante precisão, a evolução do número de pessoas em cada compartimento e modelar a dinâmica da epidemia, incluindo a primeira fase de evolução exponencial, o atingir da situação de imunidade de grupo e o subsequente decair das infecções.

Mas estes modelos apenas são precisos quando as condições de transmissão se mantêm essencialmente inalteradas durante a evolução da epidemia. Isso não é o que acontece com a covid-19, onde as disposições legais e as alterações comportamentais alteram os parâmetros dos modelos, que assim passam a ter de ser estimados dia a dia. Na prática, estes modelos apenas conseguem prever, com razoável confiança, a evolução num curto período, de uma a duas semanas. A partir daí, tudo depende dos comportamentos das pessoas, das condições atmosféricas, da imunidade adquirida e de muitos outros factores imprevisíveis. Significa isto que a nossa capacidade para prever, a médio e longo prazo, a evolução desta pandemia é muito limitada. Existem argumentos que permitem sustentar posições muito diferentes no que respeita a questões tão simples como a necessidade futura de máscaras, o nível de vacinação que trará alguma normalidade, o nível de infecção que conduz à imunidade de grupo, a ocorrência de futuras vagas, etc. Esta diversidade de opiniões é normal numa situação de elevada incerteza como a que atravessamos.

Significa isto que não devemos confiar nos cientistas, nos epidemiologistas, matemáticos, médicos, virologistas e economistas que tentam usar modelos para prever a evolução futura desta crise? Não, antes pelo contrário, devemos usar todos os instrumentos que temos disponíveis. Mas devemos, isso sim, evitar depender de opiniões monolíticas, e não basear a nossa actuação num muito reduzido número de especialistas que por vezes depositam uma confiança injustificada nos seus modelos, inerentemente falíveis. No seu livro A Sabedoria das Multidões (Wisdom of the Crowds), James Surowiecki argumenta que, em geral, muitas cabeças pensam melhor do que uma, e que a consideração de uma diversidade de opiniões conduz em geral a melhores decisões.

É por isso que faz todo o sentido a criação de um conselho científico de especialistas de áreas diversas e com diversas visões que, de uma forma estruturada e sistemática, tenham a missão de analisar a situação da covid-19 e elaborar um conjunto de recomendações que possa ser usado pelo Governo para tomar decisões. A existência de um conselho científico que tenha como responsabilidade definir e elaborar, por consenso, documentos e critérios de suporte à decisão daria a melhor garantia de que responderemos adequadamente à situação de elevada incerteza que esta pandemia continuará a causar nos tempos mais próximos.

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