A raça de Biden

A forma como Biden lidar com o racismo ditará se terá, ou não, o seu momento Lincoln, ou JFK, ou LBJ. Ironicamente, para ter hipótese de ser bem sucedido, tem de sacrificar Obama.

O imperador romano Adriano deveu quase tudo a Atiano. Ele dedicou-lhe 30 anos da sua vida, protegendo-o, servindo-o, fazendo-o chegar ao topo do poder, mesmo à custa da eliminação de todos os seus adversários. Esta última tarefa criou demasiados inimigos poderosos e Adriano teve de livrar-se de Atiano. Marguerite Yourcenar descreveu de forma deliciosa o momento deste sacrifício: “Segui o seu conselho: ele perdeu o seu posto. Um ligeiro sorriso provou-me que esperava isso mesmo. Sabia muito bem que nenhuma solicitude intempestiva para com um velho amigo me impediria de adotar a atitude mais esclarecida; aquele fino político não aprovaria que eu procedesse de outra forma”.

Passou um mês desde o início da presidência Biden. Já muito se disse e escreveu sobre ela. Mas pouco se tem falado por cá daquela que será a grande questão que o 46.º Presidente dos Estados Unidos terá de enfrentar: o racismo. A forma como lidar com ela ditará se terá, ou não, o seu momento Lincoln, ou JFK, ou LBJ. Ironicamente, para ter hipótese de ser bem sucedido, tem de sacrificar Barack Obama.

O racismo é a negação do Credo fundacional dos EUA. No famoso panfleto Common Sense, Thomas Paine considerava a existência de escravos como contrária à teoria dos direitos naturais. O mesmo se aplica à discriminação de qualquer pessoa com base na raça. Já a Declaração de Independência consagra como “verdades autoevidentes” que “todos os homens são criados iguais e são dotados pelo Criador de certos direito inalienáveis”. A questão foi também discutida pelos Pais Fundadores durante a convenção de Filadélfia, em 1787, na elaboração da Constituição, ainda que acabando por se optar por remetê-la na prática para a decisão soberana de cada estado.

Mas o racismo é uma das forças mais persistentes de toda a história dos Estados Unidos. Esteve presente no período colonial, na fundação, na expansão da república, na guerra civil, na segregação, nas leis de Jim Crow, no movimento dos direitos civis e de voto, etc. Manifesta-se atualmente sob a forma da existência de um racismo endémico, visível na violência policial contra os negros, na população prisional, na diferença nos salários, nas condições de acesso à educação e nos sucessivos assassinatos a sangue frio de negros. George Floyd foi apenas um de vários exemplos, sendo que desta vez todos tiveram de ver as imagens durante muitos dolorosos minutos. 

Obama percebeu que os EUA não podiam ser exemplo para ninguém enquanto perdurassem estes demónios na cave da sua esplêndida casa. Todavia, ainda que com boas intenções, ele contribuiu para agravar mais o problema, dividindo o país em dois. Em parte, sem culpa nenhuma, só por ser quem é. Em parte por ter levado demasiado longe e num espaço de tempo muito curto a tentativa de transformar profundamente a América. No entender de muitos norte-americanos, ele abusou das medidas de discriminação positiva (a “Affirmative Action”) para privilegiar grupos particulares baseados sobretudo na raça (mas também no género) e ainda quis criar um novo herói nacional, substituindo o self made man pela minoria que sobe na vida com a ajuda do estado.

Mais. O Partido Democrata com o seu politicamente correto e os grupos da esquerda identitária, como uma parte do Black Lives Matter, entre outros, contribuíram para piorar as coisas ao colocar a questão em termos tão extremados que acabaram por levar a uma contrarreação conservadora, agora já não limitada às organizações da extrema-direita, mas abrangendo um número cada vez maior dos chamados WASP (Brancos, Anglo-Saxões e Protestantes). Estes últimos sentem-se vítimas de um racismo invertido, obrigados à autocensura nas suas ideias, privados dos seus valores e, pensam eles, preteridos nos empregos por causa das quotas, com consequências para os seus rendimentos. Foi em larga medida por isto que muitos se viraram a um dado momento para Donald Trump.

Ninguém pode ter a presunção de saber como resolver um problema que é tão antigo quanto o próprio país, porém, curiosamente, o facto de Joe Biden ser um branco, de olhos que não são azuis mas podiam ser, com ascendência irlandesa da parte da mãe e com ar de cowboy torna-o especialmente adequado para esta causa. Talvez só alguém com as suas características possa tentar dar resposta à indignidade de haver pessoas discriminadas, e mal tratadas, apenas por terem uma pele diferente e ao mesmo tempo não dividir ainda mais a América.

Não é nada certo que consiga. Os estudos revelam que a questão da raça é hoje a mais divisiva no país, à frente das económicas e sociais. Todavia, quer por razões políticas, quer morais, ele não pode deixar combater, sem contemplações, o racismo. E para ter hipótese de ser bem sucedido tem de começar por livrar-se de Obama, além de colocar na ordem vários dos seus companheiros Democratas e os grupos radicais que giram em torno do partido.

Uma coisa é certa: é na raça que vamos ver qual é a raça de Biden.

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