Família: será que já estão todos cansados uns dos outros?

O ser humano precisa de contacto. Sabe-se que todas as relações vividas digitalmente têm essa falha. São uma solução, mas não são a escolha preferencial.

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Quase um ano passado na gestão do impacto de uma pandemia e é bem visível que se está a viver uma sindemia. São bem conhecidos os vários impactos a nível laboral, socioeconómico e na saúde. Não se pode olhar só para a necessidade de uma resposta imediata do sistema de saúde, uma vez que a pandemia trouxe um desafio à resistência física e psicológica do indivíduo e das famílias.

É tempo de valorizar a capacidade humana na adaptação à adversidade — a pandemia pôs em causa a sobrevivência e todas as rotinas individuais e de grupo.

Os recentes estudos na área da saúde mental indicam que o impacto negativo tem sido muito significativo. Os indivíduos estão mais deprimidos, mais ansiosos e mais stressados. Em parte, porque estão no processo natural de ajustamento e na procura de estratégias que lhes permitam manter a sua homeostase.

Alguns ficam em dificuldade, porque não têm nem recursos internos, nem externos. Outros sentem-se cansados do impacto da covid-19 nas suas vidas. Estão, a grande maioria dos indivíduos, em fadiga pandémica.

Já não aguentam ver as notícias sobre a pandemia (fadiga da informação), sentem-se desmotivados para levar a cabo as rotinas do dia a dia (fadiga física), tristes e ansiosos com o impacto da fadiga em si e nos outros (e.g. amigos e familiares) (fadiga emocional), cansados para aderir e cumprir as medidas preventivas (fadiga comportamental), esgotados com a imprevisibilidade associada à pandemia e com o impacto da mesma na concretização de projetos a curto e médio prazo (e.g. trabalho, férias, mudança de casa, casamento, ter um filho) (fadiga da durabilidade). E ainda, sentem-se cansados de conviver sempre com o mesmo grupo de pessoas (sobretudo, a família nuclear), ou da ausência desse convívio (fadiga relacional).

A socialização vista por uma lupa, atualmente, é difícil de ver! Todas as medidas preventivas em saúde pública indicam que o indivíduo tem de se distanciar, não pode tocar, não pode abraçar, não pode cheirar, não pode beijar. Quem? Todos aqueles que não vivam na sua bolha, ou mesmo aqueles que lhe são próximos. Quando esses estão em medida de isolamento profilático e/ou quarentena, não podem ser próximos.

A rede social de cada indivíduo está a ser abalada por uma experiência social, que, à luz da ciência, se fosse induzida, não passava na avaliação de uma comissão de ética. Não se pode colocar pessoas isoladas, sem socialização, sem a proximidade do calor humano? Não. Mas num estado de emergência, sim.

A durabilidade desta condição ofusca a mente e a tomada de decisão. Por isso, torna-se mais difícil estar próximo digitalmente dos entes queridos (familiares e amigos) e resistir ao desejo de não estar fisicamente presente.

O ser humano precisa de contacto. Sabe-se que todas as relações vividas digitalmente têm essa falha. São uma solução, mas não são a escolha preferencial.

A família nuclear, a tal bolha com quem se pode estar, por decreto, é a salvação para esta necessidade de estar próximo do outro. Sabe-se que se acentuaram os conflitos familiares em período de confinamento total, ou mesmo parcial. Como se retirou a maior parte das técnicas de descompressão que cada um tinha como recurso para gerir situações de conflito e de dilema, que permitiam desfrutar de um saudável time out das relações, é natural que com maior proximidade existam mais interações e mais problemas para resolver.

Estes são tempos também desafiantes para as relações: de casal, maternas, paternas, fraternas. Todos na mesma bolha, a desempenhar três ou mais papéis. São pais e mães, a desempenhar uma profissão, com a carga das tarefas domésticas e múltiplas refeições, e alguns ainda são professores dos filhos – tudo isto ao mesmo tempo, sem intervalos, no mesmo espaço e sem a salutar conversa do café. São também irmãos a ajudar a cuidar uns dos outros e a gerir deveres académicos num espaço que era muitas vezes só de lazer.

O resultado não é linear, mas em algum momento ou relativamente a um destes papéis que desempenha agora na sua vida, cada indivíduo já desejou voltar ao pré-covid da sua existência. E, na sequência disso, já se sentiu cansado de estar na sua bolha, só com a sua família nuclear, ou até o cansaço de estar isolado, sozinho, sem a sua família.

Neste tempo de confinamento total, as famílias, nas suas diversas formas e estruturas, podem sentir a sua socialização presencial pouco entusiasmante e rapidamente navegarem para uma socialização digital abusiva, que, apesar de fornecer mais interações, não satisfaz plenamente a necessidade de sentir o outro presente.

Para que as dinâmicas familiares sejam o mais possível positivas é importante o apelo à criatividade, à diversidade, ao humor e à partilha de interesses. Isto pode passar pela arte em conjunto, pelo jogo (online e offline) entre pais e filhos, pela leitura partilha de um mesmo livro e até pela descoberta de parcerias na realização das famosas tarefas domésticas rotineiras.

Fazer equipa é estar presente, num equilíbrio entre aquilo de que se pode desfrutar do mundo presencial e também do mundo online. Sem nunca esquecer a necessidade de tempo para si próprio, enquanto indivíduo. Tudo isto permite contribuir para o bem-estar geral e para o aumento da percepção de controlo sobre a adversidade. Assim, vão-se fortalecendo laços com os mais significativos, dentro e fora da bolha familiar, tão relevantes em tempos de sindemia.

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