Voltar a colocar no palco a política de ciência

Toda a despesa em ciência é investimento. Há que não marginalizar as ciências sociais, pois que até a estruturação das políticas advém do seu olhar sobre a ciência, a inovação e o digital.

A análise dos problemas depende de teorias enquadrantes, dos conceitos usados e, por vezes, da “influência” de representações sociais. Surgem conceitos diferentes com a mesma designação provenientes de fontes diversas. Há que clarificar.

Tem havido grande debate sobre como olhar a despesa em ciência. Há já muitas décadas que um dos pioneiros da sociologia da ciência, Ben David, da Universidade Hebraica de Jerusalém, expressou que a ciência era vista, por uns, como cultura, por outros, como investimento. Mas que a despesa em ciência é toda ela investimento.

A óptica da ciência como cultura levou, no caso português, a Ministérios da Educação e da Ciência por força do tempo ou por desactualização. Esta perspectiva conduziu, em geral, a atribuição de pouco dinheiro para as actividades de investigação científica.

No sentido alargado de investimento e usando a formulação de Maria de Lurdes Rodrigues (M.L.R.), no artigo “A armadilha da ciência”, há “investimento em ciência prolongado no tempo (num primeiro momento) e mobilização de investigadores e conhecimento científico transformando um problema em oportunidade de aplicação de conhecimento (num segundo momento)”. Acrescentaria que a solução de um problema pode implicar a obtenção de novo conhecimento, que pode ser através de investigação básica estratégica. O caso de novos medicamentos e vacinas está cheio de exemplos.

A produção de conhecimento científico, numa óptica actual alargada de investimento, pode visar objectivos da economia a cultura. Olhemo-los, pois, como não antagónicos e tendo todos de ser prosseguidos com independência e isenção. E mais, como realça Manuel Heitor no artigo “Mais futuro, com mais ciência e mais economia?”, a polarização do debate é cada vez mais estéril.

Quatro Hélices da produção de conhecimento científico

Artigos recentemente publicados, como os referidos, vieram a colocar de novo no palco a política pública de ciência.

Destacaremos diversos pontos de interesse do artigo de M.L.R. para a reanálise, alargamento e redefinição da política de ciência. Começa por afirmações de base: necessidade de financiamento de longo prazo das actividades de investigação científica e da sua concessão não ser limitada a prioridades utilitaristas e economicistas, mas mais lata, proporcionando o desabrochar de conhecimento livre, sem ter de estar ligado a aplicações. Esse conhecimento livre poderá vir a ser conhecimento prévio destas. Fala da necessidade de haver recursos humanos investigadores. Reafirma a necessária independência da política de ciência.

O artigo refere o papel central de Mariano Gago com a definição de uma poderosa estratégia de desenvolvimento científico e a criação de instituições adequadas ao desempenho funcional. Direi que se torna cada vez mais clara a dimensão e qualidade da sua acção, nomeadamente na formação de investigadores, actualmente a exercerem no país e em muitos outros. Tal potenciou a participação de cientistas portugueses de grande qualidade no imenso desafio do combate a covid-19 pelo mundo fora

No final do artigo, M.L.R. coloca questões genéricas: “Que políticas devemos prosseguir para tornar mais aplicáveis o conhecimento e a ciência que os cientistas produzem em Portugal? O que devemos adicionar ao investimento em ciência para descobrir a aplicação dos conhecimentos científicos e melhorar a sua aplicação pelos agentes económicos? O que fazem os outros países? Que bons exemplos existem em Portugal que nos podem inspirar?”

Procuro aqui identificar algumas respostas. É importante haver concursos de financiamento de projectos de investigação básica (também designada investigação fundamental). E, do outro lado do espectro, concursos para projectos centrados em produtos concretos cuja solução tanto pode vir de conhecimento prévio como, cada vez mais, de investigação básica estratégica a realizar nesse projecto. As vacinas contra a covid-19 estão cheias de bons exemplos.

Outra necessidade, muito relevante para o exercício de actividades de investigação e de inovação, é criar e aprofundar numa base competitiva meritocrática condições de carreira, de estabilidade, de flexibilidade e de mobilidade de investigadores.

Na definição de estratégias e de definição de políticas, é importante situar e utilizar novas teorias, novos conceitos e tipos de instituições. Destacamos, por exemplo, o conceito de comunidades de conhecimento e inovação (KIC, na sigla inglesa) definidas como parcerias dinâmicas articulando empresas, nomeadamente PME, centros de investigação e universidades, para incentivar e encontrar soluções para problemas. Procura-se incluir na sua acção a formação e criação de emprego como pode incluir criação de empresas e instituições. Exemplos na União Europeia mostram que tal conceito pode ser usado para objectivos como alterações climáticas, saúde, envelhecimento activo.

Faço ressaltar, ainda, o enquadramento teórico e as práticas emergentes destacadas pela poderosa Triple Helix Association, inicialmente centrada na articulação de universidades, empresas e Estado, recentemente a evoluir para a ideia de Quatro Hélices, pela inclusão da comunidade dos cidadãos.

De salientar a necessidade de criar mecanismos de articulação e interacção de redes e instituições a nível territorial nacional e, também, regional e local. E ainda geograficamente, a nível europeu e global.

Há que colocar a importância de articulação e interacção da política pública de ciência com as de inovação e de digital. E de não marginalizar as ciências sociais, pois que até a base estruturante da formulação das políticas públicas específicas visando essas matérias advém do olhar dessas ciências sobre tais matérias.

Parece-me central que em todos os cursos de universidades e politécnicos, muito em especial a nível de mestrado, sejam criadas disciplinas de ciências sociais sobre a ciência, a inovação e o digital. Estas disciplinas proporcionariam a apropriação de teorias, conceitos, práticas e instituições concretas. E conduziria a melhor participação na formulação de políticas e na sua análise crítica.

Numa visão dinâmica, seria ainda de pensar o aperfeiçoamento da Lei da Ciência e Tecnologia. E de pugnar pelo estabelecimento do Conselho Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, o qual, sendo sobretudo uma entidade coordenadora, poderá proporcionar a participação na formulação nas políticas.

De acentuar, ainda, a relevância da ideia de Quatro Hélices, numa perspectiva participativa e humanista.

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