A irreversível descolonização de mentalidades

A descolonização política já aconteceu. Falta cumprir-se a difícil descolonização de mentalidades.

Sou do tempo do lixo nas praias tolerado. Das touradas enaltecidas como um grande espectáculo. Do fumar nos aviões como sinal de requinte. Do casamento gay proibido. E do mito do país bom colonizador e integrador.

São apenas alguns exemplos. Outros haveria. No meu tempo de vida tenho vindo a assistir a mudanças profundas na forma como olhamos as questões ambientais. As touradas, com mais ou menos ruído, amanhã ou daqui a uns anos, irão acabar. O fumar em aviões provoca sorrisos hoje. Pessoas do mesmo sexo podem casar. A descolonização política já aconteceu. Falta cumprir-se a difícil descolonização de mentalidades.

Ela está em marcha há anos. É um processo, como todas as mudanças, com fases de avanços e recuos, adormecimentos e efervescências, durante muitos anos remetida para circuitos académicos, educacionais ou culturais, e agora também presente no espaço público como um todo.

As camadas de discussão variam muito — às vezes parecendo muito amadurecida na voz de alguns actores, mas na maior parte das vezes, embrionária, porque só agora está a chegar a alguns sectores da população. Uma coisa parece certa. Não existe, neste momento, forma de fugir ao debate sobre a colonização e o pós-colonialismo, e todas as estruturas racistas que daí emergiram.

E ele é irreversível até porque muito já mudou. É daí que surge parte das polémicas com a linguagem e os símbolos. Não se trata de mudar o nome das coisas ou de apagar o passado e a história, mas de renomear a transformações já desencadeadas, pela revelação de outras lembranças que foram sendo ocultadas ao longo do tempo ao abrigo das representações dominantes.

Nos últimos dias, a propósito da petição para a deportação de Mamadou Ba, do voto de pesar no parlamento português pela morte de Marcelino da Mata ou da polémica em torno do Padrão dos Descobrimentos trazida por Ascenso Simões, foi isso em grande medida que se verificou. O que surpreende no meio disto tudo é a quantidade de auto-intitulados “moderados” que insistem em falsas simetrias, como se fosse possível comparar quem passa o tempo a reafirmar um discurso nacionalista, que vai facilmente buscar pontas soltas às representações oficiais supostamente neutras (do Estado, do ensino ou dos rituais quotidianos), com quem põe em causa essas narrativas hegemónicas, adicionando-lhe outras camadas de entendimento e quebrando pactos de silêncio sobre vidas violentadas, revisitando memórias para a sua reconstrução.

Acredito que isso acontece por razões diversas. Alguns porque se sentem postos em causa nos seus privilégios, baseados nas desigualdades estruturais, no tocante à classe, género ou raça, até porque está tudo ligado: colonização, opressão e exploração. Esses revelam-se até mais obstinados do que nunca, na sua rejeição da história, sentindo-se ameaçados. Mas também é justo dizer que outros simplesmente não tiveram condições para entender na plenitude o que está a acontecer.

Não é fácil pormo-nos em causa, individualmente ou colectivamente. No entanto, neste caso, existem razões para optimismo. A descolonização de mentalidades vai mesmo acontecer, por entre tensões, retrocessos, incompreensões e alguns excessos. Não só por isso, mas também porque hoje existe nitidamente uma nova geração que está disponível para lidar com os traumas coloniais, a história violenta do colonialismo, o racismo e a sua articulação com outras sujeições, abrindo brechas por entre a negação, o mito do bom colonizador e o romantismo do país integrador. Somos cada vez mais. 

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