Depois do livro e do filme, a série Os Filhos da Droga

We Children from Bahnhof Zoo, que chegou este sábado à HBO Portugal, traz para o pequeno ecrã o poderoso livro de 1978 (embora não o siga à letra), colocando Christiane F. na companhia de cinco amigos com bagagens emocionais igualmente complexas.

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“Este é um dos filmes mais horripilantes que alguma vez já vi. O facto de ser baseado numa história real torna-o ainda mais desolador.” Era assim que, há cerca de 40 anos, o emblemático Roger Ebert começava a sua crítica de Christiane F. (1981), longa-metragem que adaptou ao grande ecrã um livro que então se tornara viral, Os Filhos da Droga (1978). Escrito pelos jornalistas alemães Kai Hermann e Horst Rieck em colaboração com Christiane Vera Felscherinow (na altura apenas conhecida como Christiane F., dado que não queria divulgar o apelido), era um relato franco e inquietante da vida desta jovem de Hamburgo que tinha apenas 13 anos quando entrou no mundo do abuso de substâncias e da prostituição. Uma rapariga que, vinda de um ambiente abusivo (o pai batia na mãe), começou a experimentar bebidas alcoólicas e marijuana com os amigos antes de consumir heroína pela primeira vez num concerto de David Bowie (ele que aparece em Christiane F. e que deu o seu próprio salto para a pop experimental e para a música electrónica na Berlim que o livro visitava).

O filme, defendia Roger Ebert, era tão desconfortável como o livro. “Retrata a cultura das drogas em Berlim de forma implacável. Vemos cenas indescritíveis: um viciado salta por cima de um cubículo de uma casa de banho para arrancar uma agulha do braço de Christiane e injectá-la na sua própria veia, roubando-lhe a dose; a jovem tenta largar a heroína abruptamente e passa o tempo a vomitar para cima do namorado (e vice-versa)”, descrevia. No fim do texto, reforçava: “As imagens são tão poderosas, os horrores tão fortes e as interpretações tão desoladoramente realistas. Este é um filme dos infernos.”

Décadas depois, eis que chega We Children from Bahnhof Zoo, adaptação televisiva d’Os Filhos da Droga que não tenta seguir o livro (ou o filme) à letra. Por um lado, a acção não se passa nos anos 1970, apesar de continuarmos a ouvir os acordes de Rebel rebelStarman (o terceiro dos oito episódios chama-se mesmo Bowie); por outro lado, Christiane (aqui interpretada pela austríaca Jana McKinnon) já não surge como a única protagonista. A série ficciona também as histórias de cinco colegas, cada um com a sua igualmente complexa bagagem emocional: Stella (Lena Urzendowsky), Babsi (Lea Drinda), Axel (Jeremias Meyer), Michi (Bruno Alexander) e Benno (Michelangelo Fortuzzi).

Nos primeiros episódios, a série, disponível desde este sábado na HBO Portugal, não é tão impiedosamente claustrofóbica como o filme ou o livro, embora certas cenas gráficas com seringas possam incomodar determinados espectadores. Inicialmente, a personagem mais trabalhada e interessante parece ser Stella. “Ela é a mais adulta desde o começo, porque tem de ajudar os irmãos mais novos e olhar pelo bar da mãe, que tem problemas ligados ao álcool e não consegue cuidar de si em condições”, referiu recentemente à Vogue alemã a actriz Lena Urzendowsky, que também integra a série How to Sell Drugs Online (Fast), disponível na Netflix.

Os restantes protagonistas tentam esconder os seus problemas ou espantar os seus demónios em relativo silêncio: Benno sujeita-se à prostituição para tentar arranjar dinheiro para a operação do cão; Axel e Michi consomem heroína regularmente; Christiane sofre visivelmente com a relação conturbada dos pais, Robert e Karin (Sebastian Urzendowsky e Angelina Häntsch, respectivamente). Aos poucos, a procura de um escape torna-se uma perigosa dança com a morte.

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Benno e Christiane DR

À conversa com o jornal austríaco Kleine Zeitung, Jana McKinnon elogiou Christiane F. e o trabalho de Natja Brunckhorst, a actriz que interpretou a jovem no filme de 1981. “Tentei estudar a forma como a sua Christiane encarava o mundo e a maneira como os seus olhos se transformavam quando via certas coisas, porque muitas vezes fica-se com a sensação de que ela nem sabia o que estava a acontecer”, comentou, aludindo ao impacto duradouro d’Os Filhos da Droga. “​Acho muito bom que o filme e o livro ainda estejam a ser discutidos nas escolas. Não sei se dá para mostrar uma série na escola, se calhar não há tempo suficiente num período para isso. Mas espero que as pessoas assistam em casa e se sintam tocadas.”

O produtor Oliver Berben falou à revista The Hollywood Reporter sobre o tom de We Children from Bahnhof Zoo, cuja paleta de cores diversificada contrasta com a aura pesada e depressiva da longa-metragem (algumas publicações alemãs criticaram a forma como este novo projecto glorifica ou romantiza o abuso de substâncias). “A série age mesmo como uma droga. Ela puxa-te”, comenta, referindo que a ideia foi reflectir tanto os altos como os baixos da dependência.

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