Biden telefona ao rei saudita antes de divulgar relatório sobre morte de Khashoggi

Conclusões da CIA sobre o assassínio do jornalista devem ser divulgadas esta sexta-feira. Casa Branca terá de anunciar consequências mas não é certo que estas incluam o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman.

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O príncipe Mohammed bin Salman e Donald Trump na cimeira do G20 de 2018 MARCOS BRINDICCI/Reuters

Joe Biden falou com o rei Salman da Arábia Saudita pela primeira vez desde que é Presidente, quando se espera a publicação de um relatório dos serviços secretos norte-americanos que implica o príncipe herdeiro saudita no assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, em 2018. Segundo a descrição do telefonema divulgada pela Casa Branca, o Presidente não mencionou o relatório nem o nome de Khashoggi na conversa com o monarca da Arábia Saudita, antes “afirmou a importância que os Estados Unidos dão aos direitos humanos universais e ao Estado de direito”.

Com a divulgação das conclusões da CIA sobre o assassínio anunciada como iminente – a imprensa americana garante que serão divulgadas esta sexta-feira –, o jornal The New York Times nota que o tema pode ou não ter sido referido no telefonema de quinta-feira (noite em Portugal), face a uma descrição “escrita na educada terminologia das trocas diplomáticas – vaga até ao extremo”.

Mas mesmo que a morte macabra do saudita que era colunista do diário The Washington Post e residente nos EUA não tenha sido tema de conversa, Washington espera que o telefonema em si mesmo reflicta o desejo de mudança nos termos da relação com Riad. Uma mudança tornada obrigatória pela morte de Khashoggi, entre outras violações dos direitos humanos. O primeiro passo é recuperar Salman como interlocutor do chefe de Estado norte-americano – o líder de facto do país é Mohammed bin Salman (MBS), que fala directamente com todos os dirigentes mundiais e tinha quase linha aberta com a Administração Trump.

O relatório que Trump nunca permitiu que fosse divulgado responsabiliza MBS pela morte do jornalista, atraído ao consulado saudita de Istambul, onde o esperava um “esquadrão da morte” de membros dos serviços de segurança e secretos sauditas. Documentos judiciais incluídos num processo a decorrer no Canadá contra MBS e citados esta semana pela CNN revelam que os dois jactos em que os assassinos viajaram para a Turquia são propriedade da coroa e do próprio príncipe.

“I saved his ass”

A Administração Trump impôs sanções a 17 sauditas, mas o próprio Presidente recusou criticar o príncipe. Em 2019, nas entrevistas gravadas pelo jornalista Bob Woodward para o seu último livro, Rage, (Raiva) Trump congratulou-se até de ter impedido uma investigação do Congresso a MBS. “Salvei-o” (“I saved his ass”), disse.

A Casa Branca já sugeriu que prepara novas medidas contra os responsáveis pela morte de Khashoggi: o conselheiro para a Segurança Nacional de Biden, Jake Sullivan, disse a semana passada que a Administração vai apresentar “acções adicionais” quando o relatório for divulgado, com activistas dos direitos humanos a admitirem que podem estar em causa sanções contra entidades sauditas e até o próprio MBS. Já na quinta-feira, Jen Psaki, porta-voz da Casa Branca, disse aos jornalistas que há áreas onde os EUA irão “expressar preocupações e deixar aberta a possibilidade de prestação de contas”.

Foi também Psaki que afirmou que Washington pretende “reajustar” a relação com Riad – considerar o rei Salman, e não o príncipe, como interlocutor, faz parte desse esforço – quando confirmou que Biden iria falar com o rei numa “conversa directa” e apenas entre os dois.

Agnès Callamard, de saída do cargo de relatora especial da ONU para as mortes extrajudiciais, onde foi a primeira a investigar o assassínio de Khashoggi, defende que sanções contra os bens e as contas de MBS seriam “o mínimo”, caso as informações dos serviços secretos mostrem que este incitou ou ordenou o crime. Neste cenário, diz Callamard, os EUA deveriam congelar o envolvimento diplomático com MBS. “Banir a pessoa responsável pelo assassínio de Jamal Khashoggi do palco internacional é um passo importante no caminho para fazer justiça a Jamal Khashoggi”, disse num debate esta semana na Universidade de Columbia.

Mas se algum tipo de “reajustamento” parece possível, e a suspensão da venda de armas que Riad possa usar na guerra do Iémen já o mostrara, é quase inconcebível que isso passe por ignorar MBS.

Aliás, o príncipe também é ministro da Defesa e já falou na semana passada com o homólogo americano, Lloyd J. Austin, sugerindo que a nova Administração sabe que tem de manter o contacto a algum nível. Recusar fazê-lo seria declarar que Washington “não se relaciona com um responsável chave no assassínio de um residente nos EUA”, resume o Times, só que neste caso esse responsável é também o futuro rei de um país que nunca deixará de ser essencial em qualquer assunto do Médio Oriente.

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