Perdoai-lhe, senhor, que não sabe o que diz

Ao contrário do que diz Ascenso Simões, o Império não foi nenhuma invenção salazarista e vê-lo tratado como tal dá vontade de rir.

Não vou comentar as barbaridades e alarvidades declamadas por Ascenso Simões em recente entrevista ao Observador, aliás já amplamente criticadas e repudiadas na imprensa. Quero apenas denunciar a granítica ignorância da História que o sr. deputado exibiu. “Falta o conhecimento da história. Falta perceber verdadeiramente que não tivemos império nenhum”, lamenta o sr. Ascenso, logo ele, a quem esse conhecimento da história falta por completo.

Durante as décadas de 1870 e 1880, a sociedade urbana, sobretudo em Lisboa e no Porto (em menor medida), transformou-se profundamente. Em 1876 fundou-se o Partido Republicano Português (PRP); a Sociedade de Geografia nasceu em 1875 e em 1877 partiam para a África Austral Roberto Ivens, Serpa Pinto e Brito Capelo. Deu-se uma “euforia colonial”, uma espécie de descoberta da nossa vocação africana, uma dimensão geminada com o vetusto tronco da portugalidade, que nessa década de 70 ateou um nacionalismo nunca visto em Portugal. Na década de 70, pode dizer-se, até nos meios populares se descobriu o destino africano de Portugal.

Atirando mais achas para a fogueira, o PRP decidiu comemorar o centenário de Camões (8.6.1880) com a máxima pompa e com o cuidado de atrair o máximo de povo possível. Camões, “a mais genuína expressão do génio português” no apogeu da sua viril criatividade, seria o grande factor da unidade nacional, a ideia e o símbolo mesmos da pátria. A manifestação de 8 de Junho foi um sucesso, e de entre os milhares e milhares de pessoas que participaram sobressaía agora o elemento popular – o povo.

Seguiram-se então outras e variadas celebrações cívicas, não apenas em Lisboa e no Porto mas também em remotas terras de província. A partir de 1880, com a entrada em cena do PRP e a chegada da plebe ao palco político, a política portuguesa mudou. Essa política tinha agora de acomodar massas urbanas insubmissas. Estabeleceu-se em Portugal um clima de exaltação patriótica inicialmente criado pelas comemorações camonianas. O centenário da morte do genial marquês de Pombal, o herói que expulsara os jesuítas, serviu para acirrar o anti-clericalismo radical, outro factor não despiciendo de aglutinação das hostes radicais. Outras associações e agremiações se criaram. O que interessa reter, para compreender como sequentemente o colonialismo e o imperialismo se tornaram indiscutíveis, é a extrema exacerbação do patriotismo apoiado sobre dois grandes pilares que eram Camões, o genial épico que narrou em 8816 versos decassilábicos a grandiosa saga portuguesa dos Descobrimentos, e a elevação de Portugal a cabeça de um império luso-africano. O Império e as colónias tornaram-se incriticáveis. Isto já na década de 1880.

O Império não foi nenhuma invenção salazarista e vê-lo tratado como tal dá vontade de rir. Sem o contexto de mobilização patriótica desenvolvido na década de oitenta do século XIX, as reacções ao ultimato inglês de Janeiro de 1890 seriam inimagináveis. A notícia de que Portugal vergara a cerviz varreu Lisboa como um relâmpago e foi explorada tanto por monárquicos como por republicanos. Na noite de 11 de Janeiro de 1890, as praças, as ruas e os cafés da Baixa encheram-se instantaneamente. No dia 12, a ira popular apedrejou as janelas da embaixada britânica em Lisboa: Angola e Moçambique eram nossas!

Depois de muitas e muitas peripécias, gradualmente o fogo patriótico foi-se extinguindo. Mas, com o Ultimato de 1890, ficou estabelecido o monopólio republicano do patriotismo. A monarquia constitucional, que uma década de rituais e comunhões cívicas divorciara do povo urbano, sobreviveu às sequelas do ultimato mais isolada do que em qualquer anterior momento da sua existência. Outro resultado do ultimato foi a definitiva “sacralização do império” (Valentim Alexandre & Jill Dias). Na precisa altura em que o domínio colonial se tornava “intangível” (V. Alexandre & J. Dias), a monarquia revelara-se incapaz de o preservar. Na imaginação da massa urbana politizada, que muita prosa de escritores públicos aliás confirmava, cristalizou a ideia de que “os Braganças” e a estrita oligarquia que os rodeava eram “um corpo estranho no corpo da nação” (V.P.V.). Todo o establishment – incluindo o rei – se viu ameaçado por causa da perda de uma parcela de terra africana que bem ou mal julgávamos nossa.

A República herdou o Império. Cuidou dele o que pôde, que não era muito porque nós éramos pobres. (Em 1874, Fontes Pereira de Melo teve margem para investir umas poucas centenas de contos em Angola.) Durante a I Guerra Mundial, a República enviou para África 39.000 soldados que sofreram, às mãos dos alemães, derrotas após derrotas. Norton de Matos, quando governador na década de 1920, aumentou muito significativamente a verba do orçamento destinada à escolarização. Mas já era de há muito mais do que evidente que não tínhamos meios para nos arvorarmos em potência colonizadora. Salazar não inventou nada, administrou uma herança. Na realidade, herdou o Império, mas designou-o como as “nossas províncias ultramarinas”, para sublinhar a sua pertença congénita a Portugal. Onde está a invenção? Mas o sr. deputado Ascenso Simões é de opinião – contra toda a evidência factual – “que esse império que está na nossa cabeça é o império salazarista. É uma construção simbólica do império salazarista”. Alguém percebe esta frase? 

Termino lembrando um pormenor: tivemos, de facto, um império – o império luso-brasileiro. Durou uns séculos. Não me parece que deva ser atirado para uma nota de pé de página da história. Ou terá sido também o Brasil “uma construção simbólica do império salazarista”?

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