Eutanásia: o medo que temos de morrer

Quando o Estado permite que os seus concidadãos antecipem a morte, por medo dela, sem lhes dar cuidados de saúde adequados a que o medo de morrer se transforme em sentido de vida, alguma coisa está a falhar na nossa comunidade humana.

Os senhores deputados, na sua maioria, votaram a legalização da eutanásia. Se o texto aprovado na Assembleia da República for promulgado pelo Senhor Presidente da República, teremos lei. Contudo, o Senhor Presidente da República solicitou “apreciação preventiva da constitucionalidade de normas constantes” do texto aprovado pelo Parlamento.

A nós, cidadãos, compete discuti-la. A alguns de nós, profissionais da saúde – em particular médicos e enfermeiros –, cabe decidir sobre se aplicará a lei ou invocará objeção de consciência. Como sabemos, em saúde, decidir ajudar a nascer, ajudar a curar, ajudar a reabilitar, aliviar o sofrimento na morte, é muito diferente de deliberar sobre praticar o ato de matar. São realidades éticas completamente diferentes, que exigirá de cada um, uma profunda reflexão de ponderação entre o bem que pode considerar fazer a quem pede para morrer, e a sua consciência científica e ética de proteção da vida e alívio do sofrimento.

O texto aprovado no Parlamento coloca diversas questões que merecem discussão científica, ética e jurídica.

As três condições de saúde-doença em que a eutanásia é aceitável neste texto são as seguintes: “sofrimento intolerável”; “lesão definitiva de gravidade extrema” e “doença incurável e fatal”. Para as ciências da saúde, o sofrimento intolerável implica, habitualmente, dor intensa e perda de sentido da vida. A dor elimina-se com analgésicos, numa escalada farmacológica que pode ir até à anestesia. Não podemos confundir eventual falta de acesso a tratamento eficaz, com ausência científica dele. Hoje, em saúde, ter uma pessoa com dor é má prática profissional.

Quanto à perda de sentido da vida, constitui-se como diagnóstico das ciências da saúde. Para a Enfermagem é “angústia espiritual” e o plano terapêutico para a pessoa em causa leva a um encontro desse sentido de vida perdido. Em saúde, fazemos isto todos os dias. Mais uma vez, convém não confundir o não acesso ao cuidado, com ausência de resposta terapêutica ao sofrimento.

No que se refere a lesão grave e doença fatal, as ciências da saúde lidam hoje com ambas as situações como condições extremas de saúde-doença. O plano terapêutico implica, no primeiro caso, a promoção da capacidade de adaptação (veja-se o caso dos ilustres governantes em cadeiras de rodas) e, no segundo, a prestação de cuidados paliativos até ao fim da vida.

Assim, antecipar a morte nestas condições apenas será científica, ética e juridicamente aceitável se considerarmos o segundo requisito deste texto aprovado: a vontade livre da pessoa em querer antecipar a morte.

A este respeito, naturalmente que é compreensível que uma pessoa que se sinta em sofrimento, que tenha uma lesão incapacitante para aquilo que deseja fazer, ou que se confronte com uma doença fatal, sinta vontade de antecipar a sua morte. Contudo, sabemos do conhecimento científico que essa vontade é motivada pela perda de sentido para a sua vida e/ou por medo de morrer. Todos os dias em saúde se ajudam estas pessoas a reencontrar sentido para a sua vida e a morrerem acompanhadas, assistidas, e sem sofrimento.

Sabendo isto, onde caberão os casos de vontade livre de querer morrer? Será que, como muitas vezes acontece à nossa fragilidade humana, achamos que antecipar a morte é o caminho mais fácil? Mais fácil para quem? Para quem morre, efetivamente deu-se o fim. Nunca poderá voltar atrás. E para quem mata? E para a história da comunidade humana que delibera a possibilidade de antecipar a morte? Temos conhecimento científico e reflexão ética suficientes para estas respostas?

O respeito pela dignidade de quem quer antecipar a sua morte não deverá dar origem a um plano terapêutico científico adequado de alívio do seu sofrimento e encontro do seu sentido de vida, de modo a que a sua decisão livre seja a de querer viver e não querer morrer?

No plano jurídico, este texto aprovado pelo Parlamento coloca problemas sérios ao Senhor Presidente da República e ao Tribunal Constitucional.

Em primeiro lugar, a questão de saber se a antecipação da morte não viola o princípio da inviolabilidade da vida, enunciado no artigo 24.º da nossa Constituição. Depois, saber como se insere este direito a antecipar a morte no quadro constitucional das liberdades consagradas na lei fundamental. As liberdades estabelecidas na Constituição visam a vida e a sua promoção, não preveem um direito a antecipar a morte. E, por fim, a questão de saber como é que uma Constituição que consagra o direito à proteção da saúde, geral e universal, como resposta a todas as necessidade de todas as pessoas em matéria de saúde-doença, e estabelece igualmente o dever, também universal, de defender e promover a saúde, aceita uma liberdade de antecipar a morte por razões de saúde-doença; sobretudo, quando a resposta constitucional a este direito-dever é a criação pelo Estado de um “Serviço Nacional de Saúde”. Noutros termos, onde, no conceito científico e jurídico de saúde, cabe a antecipação da morte? E como é possível que o SNS, enquanto “conjunto organizado e articulado de estabelecimentos e serviços públicos prestadores de cuidados de saúde, (…), que efetiva a responsabilidade que cabe ao Estado na proteção da saúde” (Lei de Bases da Saúde, Base 20, n.º 1; sublinhado nosso), acolha esta atividade de eliminar vidas humanas? Em que conceção conceptual de cuidados de saúde se enquadra esta intervenção? Pode o Estado usar conhecimento científico das ciências da saúde e usar os seus recursos públicos para eliminar vidas? A liberdade de uns – sendo este o argumento – pode obrigar a que todos, através do Estado, se obriguem a isso?

Decidir por medo e, sobretudo, decidir por medo de morrer é perfeitamente compreensível para um ser humano. Quando o Estado permite que os seus concidadãos antecipem a morte, por medo dela, sem lhes dar cuidados de saúde adequados a que o medo de morrer se transforme em sentido de vida, alguma coisa está a falhar na nossa comunidade humana.

Tomara que a maioria política que votou este texto corresponda à legítima representação que recebeu da nossa sociedade. E esperemos o que a apreciação constitucional pelo Tribunal Constitucional nos clarifique, no plano jurídico, sobre a legitimidade desta decisão política sobre a vida humana em Portugal. Veremos se a vontade política da maioria vigente corresponde à legitimidade constitucional da lei fundamental que nos rege, enquanto comunidade humana baseada na dignidade da pessoa humana e na inviolabilidade da vida.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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