Homem assume alegada violação em directo no Instagram. Ministério Público já abriu inquérito

A PSP de Viseu, que identificou o suspeito e está na posse do seu telemóvel, afirma não ter recebido qualquer denúncia de um crime sexual e que o relatado no vídeo “pode não se confirmar”. Deputada Cristina Rodrigues diz ter feito denúncia ao Ministério Público, que já confirmou que abriu um inquérito ao caso.

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Bruno Lisita

A gravação chegou às redes sociais esta terça-feira, 23 de Fevereiro: nela, um homem alega ter violado uma rapariga, num momento em que estava em directo no Instagram. A PSP de Viseu já identificou o jovem de 19 anos que alegadamente terá perpetrado o crime e o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Viseu já instaurou um inquérito, confirmou o PÚBLICO.

O DIAP de Viseu confirma que “deu hoje [quarta-feira] entrada uma participação crime contra o jovem em causa pelo alegado crime” e que foi instaurado um inquérito. A presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, Sandra Ribeiro, terá denunciado o crime ao DIAP, de acordo com as páginas do Facebook daquela comissão e da Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro.

Também a deputada não inscrita Cristina Rodrigues informou que deu conhecimento das afirmações constantes no vídeo ao Ministério Público, “para que este investigue a veracidade dos factos” e, “a ser verdade”, inicie “a acção penal”. A deputada vai entregar, esta quarta-feira, ao Parlamento, um projecto de lei para que todos os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual sejam considerados crimes públicos, anunciou em comunicado. Fê-lo porque “não se trata aqui de um crime só contra uma pessoa, acaba por ser um crime contra a sociedade dada a gravidade, que justifica ser um crime público”, afirmou ao PÚBLICO.

Conteúdo do vídeo pode não ser “verídico”, diz PSP

Contactada pelo PÚBLICO, a PSP de Viseu afirma ter identificado o suspeito do crime assim que tomou conhecimento do vídeo. O jovem de 19 anos encontra-se institucionalizado na cidade de Viseu e a directora da instituição onde vive entregou o telemóvel às autoridades, disse o comandante Vítor Rodrigues.

Ainda de acordo com a mesma fonte, “não há qualquer denúncia de um crime sexual na PSP de Viseu há vários meses”. O crime pode “não se confirmar”, uma vez que o suspeito pode não ter tido, alegadamente, consciência dos seus actos.

Num comunicado enviado pela PSP, após as declarações do comandante Vítor Rodrigues ao PÚBLICO, é descrito o mesmo cenário: “Das diligências efectuadas, tudo leva a crer que o conteúdo do vídeo não seja verídico, no entanto o expediente foi remetido ao Ministério Público, que lhe dará o destino conveniente.”

De acordo com o mesmo comunicado, a Polícia Judiciária de Coimbra “tem conhecimento de todas as diligências”. O PÚBLICO tentou contactar a PJ para apurar se estaria com a investigação em mãos, mas ainda não teve resposta.

No vídeo, captado durante um directo promovido no Instagram pelo youtuber e humorista Fábio Alves, o suspeito alega ter violado uma rapariga, quando questionado qual foi a prática sexual mais “louca” que já tinha tido.

Após ter ouvido a resposta, Fábio Alves pergunta por diversas vezes se o jovem sabia o que era uma violação – até obter a resposta “é [as gajas] serem obrigadas a fazer”, estando subjacente que se referia à prática sexual. 

O homem de 19 anos identificou a vítima, durante o vídeo, e alega que “depois, o INEM a foi buscar”.

“Há alguma resistência a que a violação seja um crime público”

A deputada Cristina Rodrigues disse ter tomado conhecimento do vídeo através das redes sociais, depois de várias pessoas lhe terem enviado a gravação. “Face à revolta que senti ao ver o vídeo – não só pelo conteúdo do que era dito, mas pela leviandade com que era dito  a primeira coisa que me veio à cabeça foi imediatamente fazer denúncia ao Ministério Público.”

Questionada sobre o projecto de lei que apresentou esta quarta-feira ao Parlamento, a deputada admite que ainda há resistências a que a violação seja um crime público porque “se considera que a vítima tem um papel fundamental” e porque lhe é reconhecido “um direito à reserva da sua intimidade”. O processo que se segue é “doloroso”, uma vez que a vítima “vai ter de repetir várias vezes o sucedido”, algo que pode demover muitas pessoas de avançarem.

Há, na óptica de Cristina Rodrigues, vantagens ao tornar o crime de violação num crime público. “Há circunstâncias em que estas vítimas estão numa situação de especial vulnerabilidade” e não conseguem avançar com a queixa “ou não querem imediatamente fazê-lo. No sistema actual têm seis meses. Se se tornar crime público já não é assim.”

“E também a percepção que a sociedade tem do crime. Ou seja não se trata aqui de um crime só contra uma pessoa, acaba por ser um crime contra a sociedade dada a sua gravidade, que justifica ser um crime público.”

A deputada admite ainda que “gostava que fosse” possível haver alguma mudança significativa nesta área ainda durante esta legislatura, mas admite ser difícil de prever devido à pandemia, que ditou que os plenários da Assembleia se tornassem semanais. Isso “faz com que os temas que se levam a debate sejam muito menos do que o que é normal”, diz. “Na minha óptica, este seria um tema prioritário, a par de outros, que seria importante discutir. Vamos ver se há oportunidade ou não.”

UMAR repudia “sentimento de impunidade” e normalização da violação

Face ao que foi relatado no vídeo, a UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta emitiu um comunicado onde se “repudia o sentimento de impunidade social que leva a que jovens ainda considerem natural e normal um acto tão desumano e violento como o acto da violação contra uma mulher”. Sublinha-se, no texto, que não se trata de uma “experiência sexual transgressora” (remetendo para a pergunta do humorista durante o directo) porque uma “violação não é sexo, é crime”.

“Enquanto a sociedade não encarar a violência sexual e o assédio como um instrumento que impede as mulheres de serem verdadeiramente livres e autónomas e como um fenómeno que tem consequências severas para a sua saúde física e mental, actos destes vão continuar a acontecer e as vítimas vão-se sentir cada vez menos protegidas e desencorajadas a denunciar”, lê-se ainda. “Todos somos responsáveis para não permitir que isso aconteça.”

Texto actualizado com a confirmação da instauração do inquérito por parte do Ministério Público 

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