O velório da palavra

O mérito dos textos do presidente do TC pode ser criticado com a mesma legitimidade com que ele os escreveu, mas a sua liberdade individual não pode ser censurada em nome de um qualquer nivelamento ideológico sobre questões sociais fracturantes.

A história do escrito do presidente do Tribunal Constitucional (TC) sobre o lobby gay tem vários pontos adjacentes que merecem reflexão. O texto foi publicado em 2010 num espaço digital de debate académico, a propósito de um exame que tinha gerado controvérsia, quando João Caupers era professor de direito. Só em 2014 foi designado juiz do TC, por 9 anos, na quota destinada aos juristas. Esta ressalva é importante porque o seu actual estatuto dá ao assunto uma importância acrescida, mas quando escreveu o texto polémico não estava sujeito aos deveres de reserva e moderação impostos os juízes. Assim, o primeiro ponto: independentemente da validade das opiniões do presidente do TC, este é um caso de exercício de liberdade de expressão de um cidadão livre e não de violação dos deveres de um juiz.

Segundo ponto: a chamada ao Parlamento para dar explicações é inconsequente e viola a independência judicial. O cargo dos juízes do TC é inamovível e só pode terminar antecipadamente por vontade do próprio ou por sanção disciplinar. O momento para verificar a idoneidade dos candidatos ao TC é antes da sua designação, quando é suposto os currículos e percursos pessoais serem passados a pente fino. A ideia que o Parlamento pode fiscalizar o pensamento e a palavra de juízes em funções e obrigar o presidente de um tribunal a ir pedir desculpa por escritos passados, ainda que eventualmente “fora da caixa”, é simplesmente absurda. Tão absurda como os órgãos do poder judicial se lembrarem de convocar um deputado para explicar algum disparate que tivesse dito sobre a justiça – e basta ir às redes sociais para ver que não faltaria quem. Se o Parlamento convocar o presidente do TC, não se pode esperar dele outra atitude que não seja a de recusar o convite. Se lá for falha aos seus pares e à justiça.

Terceiro ponto: o TC deve ter uma composição plural, com juízes conservadores, progressistas e mais alinhados ao centro. Essa diversidade ideológica resulta da forma como são designados, por eleição por maioria qualificada dos deputados ou por cooptação pelos pares, e é inerente à função de julgar a conformidade das leis com a constituição. Não há nenhum drama se um juiz tiver concepções de vida e de sociedade diferentes das que têm os deputados de esquerda ou de direita, a menos que isso revele preconceitos constitucionalmente insustentáveis.

Por fim, o óbvio que já muitos disseram e alguns se recusam a ver: não consta que a liberdade de pensar, falar e escrever tenha sido revogada e dado lugar a uma vida pública higienizada, em que todas as pessoas pensam a mesma coisa e se expressam da mesma maneira, dentro de apertados parâmetros morais definidos por quem se arroga o poder de purificar a sociedade e de cancelar os que se atrevem a ser diferentes. Um mundo livre tem de consentir o direito ao pensamento, ainda que errado ou desviado de uma normalidade artificial que se pretenda impor à força. No limite, se eu for estúpido e estiver proibido de dizer parvoíces, nunca serei confrontado com a consciência da minha estupidez nem interpelado para mudar o meu pensamento, corrigir os meus preconceitos e educar melhor os meus filhos.

Essa sociedade em que todos pensam e falam de acordo com o politicamente correcto não existe e nunca existirá. Ela é contrária à natureza humana, que preza por definição a liberdade. Momentaneamente, esta modernidade da crítica violenta dos desvios de expressão, por pessoas que têm acesso ao espaço público e facilmente aniquilam alguém com um rótulo de qualquer-coisa-fóbico, pode silenciar os indivíduos moderados, que são a maioria. Mas não anula a diversidade; esconde-a e oprime-a. Aliás, basta olhar para o mundo para ver que essa imposição niveladora do politicamente correcto e sobretudo o policiamento agressivo que vem com ela está a produzir um movimento de sentido contrário. Um dia os avanços civilizacionais de tolerância, inclusão e não discriminação podem bem voltar atrás por causa dos exageros.

Sendo assim, o mérito dos textos do presidente do TC pode ser criticado com a mesma legitimidade com que ele os escreveu, mas a sua liberdade individual não pode ser censurada em nome de um qualquer nivelamento ideológico sobre questões sociais fracturantes.

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