Detenção e morte de Daniel Prude, dois meses antes de George Floyd, termina sem acusações

Procuradora-geral de Nova Iorque diz que a decisão do grande júri prova a “falta de vontade do sistema para responsabilizar a polícia por assassínios injustificados de afro-americanos desarmados”. Prude, de 41 anos, foi asfixiado durante um surto psicótico.

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Protesto em Rochester, na terça-feira, contra a decisão do grande júri de não fazer acusações Reuters/LINDSAY DEDARIO

Um grande júri do estado norte-americano de Nova Iorque decidiu não acusar de qualquer crime os sete polícias envolvidos na detenção, em Março de 2020, do afro-americano Daniel Prude, que viria a morrer no hospital sete dias depois.

A morte de Prude, na cidade de Rochester, foi um dos acontecimentos da primeira metade de 2020 que desencadearam os maiores protestos anti-racismo e contra a violência policial nos EUA desde a década de 1960, embora o caso tenha sido ofuscado, durante meses, pelos homicídios de Breonna Taylor e George Floyd.

O nome de Daniel Prude voltaria a ter exposição nacional nos EUA no início de Setembro, quando a polícia de Rochester foi obrigada a entregar à família as imagens captadas pelas câmaras dos agentes no momento da detenção.

O impacto da morte de Prude na narrativa maior dos protestos anti-racismo, durante o Verão, foi atenuado pela recusa da polícia em divulgar as imagens da detenção – e também pela versão inicial, nunca desmentida oficialmente, de que a morte teria resultado de uma overdose.

"O sistema falhou"

A divulgação do vídeo, em Setembro, levou à abertura de um inquérito a acusações de encobrimento, à suspensão dos agentes em causa e à demissão de vários responsáveis, incluindo o chefe da polícia de Rochester. Na mesma altura, a procuradora-geral de Nova, Iorque, Letitia James, anunciou a convocação de um grande júri – um passo indispensável para que a procuradora pudesse formalizar uma acusação.

Nas imagens das câmaras dos agentes vê-se Prude, de 41 anos, a ser detido e algemado, sem oferecer resistência, quando corria nu numa rua de Rochester, na noite de 23 de Março de 2020.

Segundo a família, Prude fugira da casa de um irmão no meio de um surto psicótico, e a polícia tinha sido chamada para impedir que ele se magoasse.

Residente em Chicago, no estado do Illinois, Prude foi expulso de casa da irmã, com quem vivia há anos, na sequência de vários episódios provocados pelo consumo excessivo da droga PCP (fenciclidina, também conhecida por pó-de-anjo). Segundo a família, essa dependência começou em 2018, após o suicídio de um dos seus sobrinhos.

Na viagem entre Chicago e Rochester  um dia antes da sua detenção pela polícia , Prude foi expulso de um comboio e ficou num centro de apoio até ser resgatado pelo irmão. Foi levado para um hospital, para ser submetido a uma avaliação psiquiátrica, mas foi autorizado a sair no mesmo dia.

“O sistema falhou a Daniel Prude”, disse o advogado Elliot Shields, que representa o irmão, Joe Prude, numa reacção à notícia de que nenhum dos polícias vai ser acusado.

“Falhou quando o libertou do hospital, falhou quando a polícia usou força letal contra ele e falhou hoje mais uma vez.”

Algemado e asfixiado

No vídeo gravado pelas câmaras da polícia, vê-se um dos agentes a pôr um capuz de malha na cabeça de Prude para o impedir de morder os agentes ou de cuspir. Segundo uma testemunha, Prude tinha dito que estava infectado com o vírus SARS-CoV-2 (o que não se confirmou).

“Liguei para a polícia porque queria que alguém ajudasse o meu irmão, e não que ele fosse linchado”, disse Joe Prude, em Setembro, numa referência ao uso do capuz de malha – uma ferramenta usada por várias polícias nos EUA e na Europa para proteger os seus agentes de ataques ou cuspidelas, mas cuja imagem evoca os linchamentos de negros pelo Ku Klux Klan, entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX.

Depois de se ter erguido do chão, ficando sentado no pavimento, três agentes forçaram-no a voltar à posição inicial, de barriga para baixo, e pressionaram-lhe as pernas, as costas e a cabeça. 

Prude viria a perder os sentidos e os sinais vitais minutos depois, sendo reanimado, ainda no local, pela equipa de emergência médica. Acabaria por morrer no hospital sete dias depois, a 30 de Março.

De acordo com o resultado da autópsia, a morte de Prude foi classificada como “um homicídio causado por complicações de asfixia num contexto de restrição física”, possivelmente agravado por um episódio de “transtorno psicótico agudo” e “intoxicação por PCP”.

Acusações raras

Ao anunciar a decisão do grande júri de não apresentar qualquer acusação contra os sete agentes, a procuradora-geral de Nova Iorque, Letitia James, criticou “a falta de vontade do sistema de justiça criminal” norte-americano para responsabilizar a polícia por “assassínios injustificados de afro-americanos desarmados”.

“O que une todos estes casos é a trágica perda de vidas em circunstâncias em que as mortes podiam ter sido evitadas”, disse James.

Segundo a iniciativa Mapping Police Violence, 28% do total de cidadãos norte-americanos que foram mortos em operações da polícia, entre 2013 e 2020, eram afro-americanos – um grupo que representa 13% de toda a população dos EUA.

No mesmo período, a taxa de mortes de cidadãos afro-americanos pela polícia, em comparação com a de cidadãos brancos, foi sempre mais elevada em 47 das 50 maiores cidades norte-americanas. Em sete dessas cidades, a taxa de mortes de afro-americanos em operações da polícia é superior à taxa de todos os tipos de homicídios no país inteiro (5% a nível nacional contra 10,5% em Reno, no Nevada, e 7% em Oklahoma City, no Oklahoma).

E a taxa de criminalidade violenta parece não ser um indicador que justifique o maior número de mortes pela polícia.

Em Buffalo, no estado de Nova Iorque – uma cidade com 259 mil habitantes e uma taxa de criminalidade violenta de 12 por 1000 –, não houve um único registo de mortes por acção da polícia entre 2013 e 2016. Em comparação, em Orlando, na Florida – com 255 mil habitantes e uma taxa de criminalidade violenta de 12 por 1000 –, 13 pessoas foram mortas pela polícia no mesmo período.

Nos sete anos entre 2013 e 2020 (os únicos números disponíveis, na sequência de uma directiva aprovada em 2013), 98,3% das mortes causadas por agentes da polícia nos EUA não deram origem a qualquer acusação judicial.

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