Síndrome de Noé: do transtorno de saúde mental aos maus-tratos a animais

Está mais do que na hora de ser criada uma resposta integrada para actuar em casos de acumulação de animais, tanto ao nível da prevenção como da intervenção.

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PAULO PIMENTA

Pelos piores motivos, como o caso do incêndio num “abrigo para animais” em Santo Tirso, no qual morreram queimados perto de cem animais, a acumulação de animais tem sido cada vez mais falada em Portugal, nem sempre de forma esclarecida. Desde logo, porque nem todos os casos de sobrepopulação e/ou maus-tratos, como era o caso de Santo Tirso, decorrem do transtorno mental conhecido como “Síndrome de Noé”, estando a decorrer nesse caso concreto uma queixa-crime por maus-tratos a animais de companhia.

Trata-se de um problema complexo, em que a maioria das pessoas que padecem desta doença não reconhecem que existe um problema, colocando não só a vida dos animais em risco, como a sua própria saúde (e a da família com quem coabita), dadas as condições de insalubridade derivadas da acumulação obsessiva de animais e que resulta em cenários verdadeiramente cruéis: animais a passar fome, em espaços sobrelotados, em constante stress, muitas vezes amontoados sobre os seus próprios dejectos, e até sobre cadáveres de outros animais, acabando muitos por morrer.

É também comum que, no caso de intervenção das autoridades e após a retirada dos animais, a pessoa reincida e comece a acumulá-los novamente num outro local. E é precisamente por isso que, para além da retirada dos animais, o acompanhamento psicossocial é imprescindível para que se consiga romper com este círculo vicioso.

A verdade é que não se pode fingir que este não é um tema conhecido das autoridades, incluindo de saúde pública. Aliás, são várias as denúncias apresentadas e existe até uma recomendação do Provedor de Justiça.

Casos como o da Arruda dos Vinhos, em que foram retirados do local mais de 100 animais que viviam em condições absolutamente indignas, e cujo processo se arrasta já há mais de um ano, sem que o tribunal permita que os animais sejam adoptados ou sem que haja um acompanhamento da denunciada que impeça que volte a acumular animais, e em que após a retirada dos animais nada foi feito para evitar que volte a acontecer, são bem exemplificativos da inércia das autoridades competentes, a começar pelas autoridades de saúde, e da ausência de políticas multidisciplinares que, em tempo, previnam o escalar destas situações.

Está mais do que na hora de ser criada uma resposta integrada para actuar em casos de acumulação de animais, tanto ao nível da prevenção como da intervenção. É precisamente essa a proposta que o Grupo Municipal do PAN vai apresentar já no próximo dia 23 de Fevereiro, na Assembleia Municipal de Lisboa.

Lisboa não é excepção destes fenómenos e são muitos os casos em que a Casa dos Animais já teve de intervir e de um momento para o outro retirar um elevado número de animais do local onde se encontravam. Contudo, a resposta não pode ser unicamente dos serviços médico-veterinários, pelo que esta proposta prevê que no Município de Lisboa sejam definidos protocolos de acção para casos de acumulação de animais e criadas equipas compostas por psicólogos, assistentes sociais, veterinários e outras autoridades competentes, bem como por associações zoófilas, para que haja a adequada identificação dos casos, o desenho de um plano de intervenção específico e o devido acompanhamento, de forma a salvaguardar a saúde das pessoas e o bem-estar dos animais.

Uma resposta integrada ao nível municipal faria toda a diferença na vida das pessoas com este tipo de transtorno, bem como na vida dos seus familiares e dos animais, tirando partido do facto de as autarquias e das associações locais terem um contacto muito próximo com a população, conhecendo a realidade do território. A aprovação destas medidas e o investimento em políticas públicas de prevenção e intervenção multidisciplinar são fundamentais se queremos assegurar a protecção de todos os seres, proporcionando-lhes uma existência condigna e livre de sofrimento, mas também se queremos dar respostas efectivas à dimensão humana deste problema, um caminho que até aqui não tem sido feito.

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