O cancro que nos entretém e nos mata

A estratégia pós-covid-19 não pode cingir-se a tão simplesmente perseguir o objectivo de uma rápida recuperação económica. A estratégia tem de ser preparar-nos para uma nova era económica, em que o desemprego crónico vai ser uma força inegável.

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Muitos são os que se questionam sobre os motivos que levam outros tantos a negar a existência do vírus ou a recusar cumprir com as medidas estabelecidas para o combater. Num mundo lauto em informação, será à primeira vista incompreensível a obstinação dos negacionistas, porém, devemos recordar-nos que o negacionismo é a primeira e a última consequência deste nosso mundo da informação. Não há, no entanto, consequência sem causa. E urge, por isso, perguntar: que mundo é este que combina conectividade com polarização, acessibilidade com distanciamento, sensibilidade com apatia, informação com ignorância e, sobretudo, um espírito de comunidade com egoísmo? É um mundo virtual e, assim sendo, monta como o principal desafio e a principal oportunidade da nossa era.

É um mundo de ilusões fáceis e emoções instantâneas, ninguém tem dúvidas. Todos o reconhecemos, todos o lamentamos, mas todos o aceitamos e nos deixamos enlear nas suas perigosas malhas. Contudo, há um fenómeno social de base que o explica: a alienação. A alienação que foi prática e legado de uma época tão dourada como o ouro derretido que sufocou o ganancioso patrício romano, Marco Licínio Crasso. São vários os factores e os mitos que concorrem para a alienação dos muitos, mas elejo um: o crescente desemprego tecnológico, cuja responsabilidade tem sido atribuída por políticos desonestos exclusivamente à mão-de-obra mais barata dos imigrantes ou à vantagem competitiva dos países do terceiro mundo. Isto, no entanto, sobraça uma verdade mais negra: o mercado de trabalho está a ser pervertido para abrir caminho a uma das maiores transformações socioeconómicas da História da Humanidade: a quarta revolução industrial com a digitalização da economia e a automação do trabalho. 

Neste campo, há que destacar a contribuição intelectual do economista Daniel Susskind, cuja recente obra Um Mundo Sem Trabalho. expõe esta problemática de forma corajosa e abrangente. Não obstante as muitas questões que deixa e cuja honestidade intelectual não lhe permite responder à falta de definição dos fenómenos sobre os quais se debruça, este autor lança-se a denunciar o que muitos tendem a desvalorizar no plano político e social: não estamos preparados para um cenário em que a máquina nos substituirá em pleno ou parcialmente no mercado de trabalho. Um cenário que, apesar de não ser para já, será para breve.

A adulação de falsos ídolos como o dito “sucesso pela competição” ou o vulgo “mérito” está a condenar as últimas gerações a uma proletarização acelerada e progressiva e, sobretudo, a corromper séria e inevitavelmente a coesão do tecido social, virando mais capazes contra menos capazes, mais bem-sucedidos contra menos bem-sucedido. Especialmente, porque esta mentalidade não compreende o essencial desta mudança, como muito bem salienta o autor: continua a preparar-nos para um mundo de trabalho que já não existe. As oportunidades de trabalho são diminutas e a mentalidade das empresas já se focam nessa realidade em que força humana de trabalho não será o principal motor da sua produtividade. Preferem ter poucos empregados, mas que respondam tecnicamente às necessidades, do que ter muitos que não o façam.

É uma realidade cruel, mas que deixou de ser darwinista, porque nem mesmo o melhor vence sempre. Foi a alienação e o perigo que esta representar para a coesão das nossas sociedades. Claro está que o desemprego tecnológico, que ainda não está sequer no seu esplendor (lamento ser pessimista), não é a principal razão que contribui para este fenómeno, mas é paradigmático. Hoje, a vasta maioria ainda vai tendo emprego, apesar dos números relativos ao desemprego (sobretudo, nas camadas mais jovens) serem muito preocupantes. É paradigmático, no entanto, pelos comportamentos e reacções que imprime na psicologia das pessoas. Quantos não se sentem frustrados com a aparente inutilidade a que nos relega a máquina? Quantos não mergulham fundo no universo das redes sociais para esquecer os seus problemas, muitos dos quais derivam da própria precariedade laboral? Poderia continuar a levantar questões, mas o ponto que quero fazer é claro.

A alienação leva à apatia e a apatia ao desinteresse ou a reacções mais violentas, como a negação da própria realidade. Não estou a dizer que todos os negacionistas são socialmente alienados. Não, de todo. O que estou a dizer é que a tracção que estas ideias ganham deve-se ao comum sentimento de desencantamento, mas, sobretudo, de preocupação. Preocupação com o futuro. Os governos têm-se preocupado demasiado com a face epidemiológica desta pandemia, mas tem negligenciado a parte económica. Muitos pensarão: de que vale estarmos bem de saúde, se não temos dinheiro para pôr comida na mesa ou paga a renda da casa?

Por este motivo, a estratégia pós-covid-19 não pode cingir-se a tão simplesmente perseguir o objectivo de uma rápida recuperação económica. A estratégia tem de ser preparar-nos para uma nova era económica, em que o desemprego crónico vai ser uma força inegável. É aqui que a oportunidade entra, ao investirmos na formação, no reforço da resposta social aos mais afectados e, sobretudo, na requalificação dos vários sectores da nossa economia. Será um esforço hercúleo, mas essencial. Salvo a metáfora, um tratamento de quimioterapia em tudo devastador que é, por seu turno, necessário para fazer regredir um cancro letal. Um cancro que nos entretém e nos mata.

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