Guerra, procura-se

Há uma tragédia metafórica no apelido do meu (ex-?) amigo e no conceito de amizade. Porque, se a vida é uma guerra, é na camaradagem que a suportamos.

Há desaparecimentos que ficarão sempre por deslindar. A vida tem-nos ensinado que somos uma espécie de bolas de bilhar, cruzamo-nos todos a grande velocidade, estacionamos por um tempo junto de quatro ou cinco esferas luzidias e, sem que o esperemos, por uma tacada qualquer vinda sabe-se lá de onde, somos empurrados para longe – ou, noutros casos, a bola que estava mais perto pira-se para o lado de lá da mesa ou, pior ainda, evapora-se no buraco negro onde vão dormir todas as bolas coloridas.

O meu grupo íntimo de amigos não é diferente do grupo de amigos de todas as pessoas: temos as nossas quezílias, as nossas desavenças, até algumas quadrilhices aqui e ali, mas soçobram sempre os amores e as memórias, e por isso acabamos a ser inseparáveis. Há de tudo: amigos com quem falo dia após dia após dia, amigos que são praticamente irmãos, amigos que posso não ver durante meses e, no reencontro, damo-nos como se não tivesse passado um só minuto.

Permitam-me a displicência de partilhar uma história pessoal. Um dia, há pouco mais de um ano, um desses amigos desvaneceu-se. Tratá-lo-ei pelo apelido: Guerra. Nem mensagens, nem telefonemas, nem mails, nem pombos-correio: não responde a nada. Estamos convencidos de que não foi um desaparecimento involuntário, daqueles de que o tempo se encarrega de ir apagando, qual onda que mordisca a gravura na areia. Foi de tal forma súbito que pareceu propositado. Propositado foi de certeza, aliás. Só não sabemos porquê. E, como tal, olhamos agora uns para os outros e encolhemos os ombros. Se era a vontade dele, quem somos nós para o contrariar?

Houve um tempo em que cheguei a temer que tivesse acontecido ao Guerra o mesmo que aconteceu a uma rapariga com quem conversava mais ou menos habitualmente há uma mão cheia de anos, no chat de uma rede social. As interacções foram diminuindo e acabei por pensar cada vez menos nela e na companhia que me fazia de manhã, enquanto lia as notícias nos sites da especialidade. Tempos mais tarde, enquanto almoçava com colegas num restaurante, vi no televisor um rosto que me era familiar: era ela. Estranhei o motivo pelo qual estava ali à vista no noticiário uma fotografia daquela amiga virtual e horrorizei-me ao ler o rodapé: havia sido assassinada num país estrangeiro.

A verdade é que isto está sempre a acontecer-nos: quantos de nós tinham grandessíssimos amigos na faculdade ou num emprego em particular e, a partir do momento em que abandonámos esse ambiente, ali se cristalizaram essas pessoas e não as trouxemos connosco, num bolso ou num malote? Os amigos ficaram lá, como uma fotografia emoldurada na qual já só não estamos nós, mas o espaço que costumávamos habitar. E, agora, esses amigos já não são bem amigos. São uma memória. Mete-se a vida pelo caminho e as pessoas acabam por, inevitavelmente, esvair-se-nos das mãos, como água valiosa que raramente conseguimos conter, mesmo que as mantenhamos bem fechadas em concha. Às tantas, os amigos são como a água: ou a bebes, ou arriscas-te a perdê-la para sempre.

Na angústia da perda e do abandono, não persiste apenas a ausência, mas também a culpa subtil da hipótese de termos feito algo que tenha afastado aquele amigo. Quanto mais não seja, porque não fizemos o suficiente para o manter junto de nós. Agora, não podemos usufruir do valor do Guerra. Não podemos rir-nos com as suas histórias mirabolantes, não podemos compadecer-nos com as suas dores, não podemos preencher o tempo a dizer alarvidades que nunca poderiam ser reproduzidas aos olhos de estranhos. E agora, com quem vamos celebrar as vitórias e chorar as agruras? Com quem é que vamos dar passeatas de carro, sem rumo, em sábados desocupados?

Há uma tragédia metafórica no apelido do meu (ex-?) amigo e no conceito de amizade. Porque, se a vida é uma guerra, é na camaradagem que a suportamos. Porque a amizade é para o combate e para o cessar-fogo. É no alívio da companhia e no sustento das palavras mágicas que endereçamos uns aos outros que, como que por artimanhas de feitiçaria, encontramos uma força que não sabíamos possuir. Mal de nós, que já não temos o Guerra nesta guerra.

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