Carrascos, vítimas, cúmplices e passividade. O caso da PIDE

O texto sobre a PIDE que o historiador Duncan Simpson publicou há uma semana no P2, onde se levanta a hipótese de a polícia política ter sido “normalizada” pelos portugueses durante a ditadura, suscitou várias reacções. Uma das visadas nessa análise, a historiadora Irene Pimentel, expõe os seus argumentos nesta réplica.

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Sede da PIDE/Cortesia Museu do Aljube

Devo dizer que hesitei em escrever sobre o artigo de Duncan Simpson (D.S.), publicado há uma semana no caderno P2, pois sei que nunca deixamos de nos sujar ao responder a falsidades e calúnias, como muito bem observou G. Bernard Shaw, e raramente se encontra justiça. Mas fiquei indignada com a desfaçatez, arrogância e sobretudo com a apropriação, deturpação e falsificação do meu trabalho, sem qualquer análise da respectiva substância, expressa em muitos dos meus livros. Por questões técnicas e de economia do texto, usarei aqui o acrónimo mais conhecido de PIDE (mesmo quando me refiro a períodos em que ela teve os de PVDE, 1933-45, e DGS, 1969-74) e colocarei em itálico as afirmações de D.S..

1. Caracterização e longevidade da ditadura portuguesa

Nenhuma ditadura, seja o fascismo, o nazismo ou o estalinismo, funciona apenas à base de repressão, a qual é principalmente dirigida contra os que actuam contra ela, “metendo-se em política”. Qualquer ditadura, como a portuguesa, tenta também seduzir as respectivas populações, diverti-las (FNAT), enquadrando-as estatalmente (LP; OMEN, MP, MPF), procurando que elas se adaptem ao regime e às suas instituições, e procurando nelas cumplicidade. Durante o longo período ditatorial, houve até ondas de consenso em torno do regime. Foi, por exemplo, a decisão de Salazar enviar tropa “em força” para Angola, em 1961, após massacres no Norte dessa colónia.

As ditaduras também tentam “comprar” as respectivas populações, procurando cumplicidades, como a de transformar alguns nos “olhos” da sua polícia, com a mentira de que parte delas poderia assim partilhar do poder ditatorial. Como mostrou Götz Ali, relativamente ao nazismo, o regime de Hitler teve inúmeros “beneficiários”. Em Portugal, qualquer antifascista (sem aspas) soube que se tinha de defender daqueles que aceitavam cair na miséria ética de trair amigos, familiares e vizinhos, num contexto de passividade provocado pelo medo.

No epílogo do meu livro História da Oposição à Ditadura (2014), afirmo que “o regime ditatorial também perdurou por ter conseguido obter e organizar em seu torno um clima de consenso” e que teve “também sucesso na sedução e aliciamento de uma parte significativa dos portugueses”. Observei também que na muito abundante historiografia sobre ditaduras é hoje pacífica “a noção de que esses regimes tiveram, entre as suas respectivas populações, numerosos apoiantes e ‘beneficiários’”.

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Arquivo da PIDE na Torre do Tombo, em Lisboa Daniel Rocha

2) Historiadores “antifascistas” (e não)

Sem nunca analisar ou criticar a substância dos meus estudos, D.S. desvaloriza-os querendo dar a impressão que nada existiu antes de ele próprio “finalmente” estudar a forma como a PIDE e os portugueses interagiram entre si. Lamento dizer que nada disso é novidade e que eu própria já analisei esse aspecto. Declara também falsamente que a geração de historiadores à qual pertenço mistura memória com História e que só se interessa por estudar a minoria que actuou contra o regime. Será que, à maneira do actual populismo, D.S. considera que essa geração só se preocupa com as “elites” e cai na armadilha de pensar que a “PIDE era do povo”, encarando este último como uma entidade colectiva homogénea, e não como um colectivo de indivíduos singulares com comportamentos diversos?

D.S. afirma que, desde “Abril de 1974, quando as forças ‘antifascistas’ asseguraram o domínio da memória colectiva sobre a PIDE, as relações entre a sociedade portuguesa e a polícia política do Estado Novo têm sido analisadas exclusivamente sob o prisma da repressão exercida sobre a pequena minoria de portugueses que se envolveu na oposição ao regime.” Dá o exemplo do meu livro A História da PIDE, focado “quase unicamente no estudo das modalidades de repressão exercida sobre a oposição ao Estado Novo”.

Lembro que em 2021 passam 47 anos após o 25 de Abril. Ora, eu própria, enquanto “força ‘antifascista’”, só dei à estampa A História da PIDE (2007), versão resumida da minha anterior dissertação de doutoramento, 33 anos depois. É que antes de assegurarem o domínio da memória colectiva sobre a PIDE, as várias gerações de historiadores “antifascistas” tiveram, primeiro, de começar pelo início e desde logo caracterizar o regime então derrubado. Foi o que fizeram Vitorino Magalhães Godinho, Alfredo Margarido, Manuel Villaverde Cabral, António Costa Pinto, Manuel Braga da Cruz e Fernando Rosas, para só referir alguns.

É certo que, em plena ditadura, no exílio, Mário Soares, Hermínio Martins e Manuel de Lucena haviam já desbravado terreno. Sobre temas relacionados com a oposição, a violência e a repressão política, destaco o papel pioneiro de Maria da Conceição Ribeiro, ao estudar a PVDE, mas também de Iva Delgado, Medeiros Ferreira, Paula Godinho, José Pacheco Pereira, João Madeira e Luís Farinha. O papel da PIDE e da DGS, quer na Guerra Colonial, quer relativamente à emigração, e ainda enquanto instituição, foi analisado, quase no mesmo período, respectivamente por Dalila Cabrita Mateus, amiga que já cá não está, Victor Pereira e por mim mesma.

Entre trabalhos mais recentes, destaco o de Pedro Serra, que fez a biografia de Roquete, elemento da PVDE e herói nacional enquanto guarda-redes, e de Paulo Marques da Silva, sobre o informador “Inácio”, de Coimbra. Penso não me enganar, ao considerar que o meu trabalho teve influência sobre estes historiadores de uma geração mais nova. No jornalismo, em televisão, no cinema e teatro, a PIDE também tem vindo a ser um tema destacado, como revela a obra de Diana Andringa, Susana Sousa Dias, Jacinto Godinho, Sofia Arêde e/ou Joana Craveiro, entre outros.

Contra a desejável solidariedade entre gerações, D.S. propõe um corte entre elas, colocando, de um lado, “a peste grisalha” “antifascista” — não entendo a razão das aspas no seu texto — que, pior ainda, combateram a própria ditadura e têm hoje uma postura de cidadania política, e do outro, jovens historiadores, pretensamente impedidos de desabrochar pelos mais velhos. Esclareço que todos os estudos sobre uma instituição que, por acaso estudei — a polícia política da ditadura portuguesa, entre 1945 e 1974 — são bem-vindos desde que sejam feitos com seriedade e com a procura da verdade possível.

3) History from below?

Juntamente com Fernando Rosas, sou acusada de ter actuado politicamente durante a ditadura, de veicular uma memória antifascista e limitar-me a “apenas” estudar a repressão da PIDE exercida sobre uma minoria de alvos políticos. Devo dizer que, sem conhecer todo o contexto e a instituição policial em causa, bem como a forma como actuou e foi percepcionada, considero que não se pode fazer qualquer estudo sério e com maturidade sobre o relacionamento entre a PIDE e os portugueses. Certamente as cartas lidas — “morosamente” — por D.S. de pouco servirão, fora do conhecimento prévio da instituição e do seu contexto.

Quanto à História “a partir de baixo”, que D.S. diz estar (pela primeira vez?) a levar a cabo, dando a entender que os “antifascistas” se limitariam a enveredar por uma História “elitista” sobre minorias, tenho duas perguntas a fazer. A primeira é se D.S. considera que se deve deixar de fora os intelectuais, artistas, professores, militares e profissionais liberais, que foram alvo dessa polícia. A segunda é se considera que estudar a forma como a PIDE lidou com emigrantes, assalariados agrícolas do Alentejo e Ribatejo, mineiros, operários, os pescadores, ferroviários e camponeses é fazer História “a partir de cima”.

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"Todos os estudos sobre uma instituição que, por acaso estudei — a polícia política da ditadura portuguesa, entre 1945 e 1974 — são bem-vindos desde que sejam feitos com seriedade e com a procura da verdade possível" Daniel Rocha

Como escreveu, no exílio londrino, Hermínio Martins, em 1968 (!), em Class, Status and Power, a PIDE ocupou-se dos “três núcleos sociais mais baixos e nucleados da sociedade portuguesa”. Entre estes, contaram-se “o grupo de pequenos proprietários rurais do Norte e Centro, com mecanismos compensatórios de escapar à miséria, através da emigração e, por outro lado, os assalariados rurais dos latifúndios do Sul e os operários das grandes concentrações industriais, nas grandes concentrações industriais e nos densos agregados ecológicos a sul de Lisboa, com maior militância política e que foram os principais alvos da repressão”.

3) Fontes e bibliografia

Quanto às fontes, verifico que D.S. está a consultar, nos arquivos da PIDE/DGS e do ministério do Interior no AN da Torre do Tombo, as mesmas que eu consultei no início do século XXI, para a minha dissertação de doutoramento e a versão reduzida desta, A História da PIDE. Por outro lado, D.S. diz que “a historiografia portuguesa contrasta fortemente com os desenvolvimentos da bibliografia internacional dedicada ao estudo das sociedades submetidas a ditaduras violentas”. De onde retira esta conclusão? É que, na bibliografia inovadora (estrangeira) que refere, menciona em particular Robert Gellately, do qual li tudo o que tinha escrito desde The Gestapo and German Society. Enforcing Racial Policy 1933-45 (1990), e até então. É claro que, à época, só pude ler o que estava publicado, mas desde então tenho actualizado a bibliografia, nos meus livros sobre a PIDE, editados até 2019.

4) Informadores e candidatos a informadores

A PIDE guardou, numa pasta, diversas cartas e postais, enviados aos vários ministérios, à Presidência do Conselho e ao chefe do Estado, a oferecerem-se para informadores dessa polícia, de todas as regiões de Portugal e de todas as classes sociais. Através das centenas de cartas que podem ser encontradas, quer na minha tese, quer nos meus livros, verifiquei que havia indivíduos que se diziam informadores da PIDE sem o serem e que esta, na maior parte dos casos, não aceitava os que se candidatavam a colaborar com essa polícia.

Depois de 25 de Abril de 1974, a imprensa denunciou várias pessoas que se tinham oferecido para colaborar com a PIDE, ao mesmo tempo que muitos portugueses publicaram anúncios a afirmar nunca terem pertencido a essa polícia. Das notícias sobre informadores detectadas em 1974, recolhi uma muito pequena amostra, porém indicativa dos locais onde a PIDE recrutava e entre que profissões. Para só falar nestas, a larga maioria desses informadores eram empregados de comércio, de escritório e bancários, bem como funcionários públicos médios, ou dos TLP e CTT. Seguiam-se, em quantidade, oficiais das Forças Armadas, guardas, fiscais e agentes de polícia e operários especializados, bem como médicos, advogados, engenheiros e estudantes.

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"A PIDE guardou, numa pasta, diversas cartas e postais, enviados aos vários ministérios, à Presidência do Conselho e ao chefe do Estado, a oferecerem-se para informadores dessa polícia, de todas as regiões de Portugal e de todas as classes sociais" Daniel Rocha

5) Excesso de denúncias

A própria PIDE tinha, nas sebentas da sua Escola Técnica, instruções sobre recrutamento de informadores. Os agentes eram, por exemplo, instados a questionar por que o queriam ser: “Patriotismo/consciência, e porquê? Medo, e porquê? Ganância/obtenção de lucros? Traição, e porquê? Infiltração/ganhar a nossa confiança, para fazer contra-informação”.

No entanto, o excesso de denúncias anónimas preocupava o próprio regime e o ministro do Interior que tutelava a PIDE, devido à contradição que elas representavam entre a delação e a ideia de Estado corporativo salazarista. Num ofício, Cancella de Abreu lamentou: “A utilização da calúnia como arma política tende a generalizar-se (...), com prejuízo não só do respeito devido pelas pessoas que exercem determinadas funções públicas, mas ainda da ordem e tranquilidade públicas.” Por isso, pedia para a PIDE “reduzir os seus efeitos”. Em 5 Janeiro de 1971, o ministro do Interior, Gonçalves Rapazote, voltou a mostrar preocupação aos organismos que tutelava com o alastramento da delação e apelou ao desencorajamento da “actividade patológica dos informadores sem orientação”.

6) Elementos da PIDE perversos e cruéis? A imagem de um “povo-vítima”

D.S. afirma que a “representação da PIDE enquanto polícia omnipotente operada por agentes cruéis e perversos” é um dos “elementos da memória ‘antifascista’ da PIDE”. No entanto, no meu livro Cinco Pilares da PIDE (2019), em que revisitei a História dos estudos sobre “perpetradores” na Alemanha nazi, elogiei o facto de “a concepção segundo a qual os carrascos nazis eram considerados monstros e assassinos, sofrendo de patologias mentais”, ter sido substituída, a partir da década de 90, numa perspectiva mais diversificada segundo a qual os criminosos “vivendo entre nós se parecem connosco”.

Diz ainda D.S.: “(…) certos aspectos da memória ‘antifascista’, a começar pela noção de ‘povo-vítima’, são convenientes à sociedade no seu conjunto. Esta leitura permite não só a desculpabilização, mas também a vitimização en masse dos portugueses em relação à ditadura, mesmo se poucos foram os que se levantaram contra ela”. Ora, no meu livro O Caso da PIDE (2017), escrevo que a “postura de os considerar [os carrascos] excepções negativas entre os ‘normais’ seres humanos contribuiu, aliás, para fornecer uma boa consciência aos alemães que viveram na época nazi”.

Ao comparar esta noção, do pós-II Guerra com a do imediato pós-25 de Abril de 1974, critiquei o facto de qualquer cumplicidade com a PIDE de portugueses ter sido “evacuada, em nome de um ‘povo-vítima’ que teria sofrido em geral a repressão da polícia política, o que não correspondia à verdade, pois os alvos da mesma eram os que se erguiam contra o regime de Salazar e Caetano, a ditadura e a Guerra Colonial” (sublinhado meu). Da mesma forma, assinalei que, “salvo excepções, foi quase esquecido o facto de ter havido não só milhares de informadores, como, ainda em maior número, candidatos a essa actividade de traição”. Em suma, D.S. utiliza o que eu própria afirmo, apropriando-se e deturpando a minha crítica à noção de “povo-vítima”, acusando-me de, pelo contrário, estar a contribuir para difundir essa falsa noção. Não sei o que diga desta apropriação e calúnia.

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Retirada da fotografia de Salazar da sede da PIDE, em Lisboa, durante o 25 de Abril de 1974 Eduardo Gageiro

Notas finais

Chamo a atenção para o facto de que, com excepção dos negacionistas, os historiadores que estudam o nazismo podem ser todos acusados de “antinazis” e os que fazem a história do Gulag de “antiestalinistas”. É uma questão de decência. Todos nós somos marcados pelas circunstâncias da nossa vida, pelos nossos valores e formas de encarar o mundo. Por isso, devemos estar atentos de modo a que estes não desfoquem a nossa visão. Ao sabermos que nunca poderemos ser neutros, devemos procurar tender para uma análise que seja o mais objectiva possível, bem como para a procura da verdade, relativa, mesmo que ela contradiga as nossas ideias feitas.

Relativamente às conclusões de D.S., não acreditando eu no essencialismo de qualquer “povo”, nem na homogeneidade deste, considero perigoso concluir, através de 500 ou até mil cartas, que terá existido uma normalização da PIDE na maioria da população portuguesa e que, por seu turno, esta se terá adaptado, colocando-se ao serviço dessa polícia. Também me parece não traduzir a complexidade dos comportamentos humanos e sociais aventar que a longevidade do regime ditatorial se tivesse devido ao facto de os portugueses colectivamente terem sido o que foram.

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Cinto do uniforme da PIDE Rui Gaudêncio

Há muitas causas para essa longevidade e algumas foram da responsabilidade da PIDE, entre as quais se contaram a transmissão do medo e da passividade política. No entanto, mais do que ter sido uma causa da longevidade da ditadura, a miséria moral em que portugueses caíram, ao disporem-se a delatar os seus próximos, foi uma consequência daquela.

Tanto é falso dizer que os portugueses durante a ditadura resistiram e a combateram, como o é afirmar que todos foram cúmplices e delatores. Tanto é desculpabilizador afirmar que todos os portugueses foram vítimas da PIDE como o é dizer que todos foram bufos e se adaptaram à PIDE. Na historiografia do nazismo, os diversos comportamentos, na Alemanha e nos países ocupados por esta, foram divididos em três grandes grupos: perpetradores, vítimas e espectadores (bystanders). Eu diria que, em Portugal, num contexto diferente e durante uma longa ditadura, houve carrascos, vítimas e passivos e que, entre todas essas categorias, existiram várias tonalidades de cinzento.

Cabe aos historiadores dizer a verdade sobre o que aconteceu no passado e mostrar como a ética soçobrou em ditadura. E, aos cidadãos, cabe dizer que não querem ir por aí.

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