A pandemia dos números

Ao bombardear o cidadão com números astronómicos da pandemia, que ele não digere e acaba por ignorar, essa informação torna-se inútil. A minúcia esconde o vazio noticioso.

Durante semanas que somaram quase um ano, o Ministério da Saúde, via DGS, produziu centenas de boletins diários sobre a situação epidemiológica do país e convocou mais de uma centena de conferências de imprensa. Durante igual tempo, em nome do bem e da saúde públicos, a imprensa aceitou desempenhar o papel de câmara de eco dos números oficiais, acompanhando fielmente as posições dos poderes instituídos.

Esse seguidismo acrítico recordou-me os briefings dos exércitos em tempos de guerra: o jornalista tem toda a liberdade para engolir os comunicados oficiais e depois tem todo o direito de os regurgitar. A matéria noticiosa não é a mesma – a guerra é outra –, mas o mecanismo, sim. Tivemos notícias das batalhas, do sucesso das operações, das baixas causadas pelo vírus e, sobretudo, tivemos números, muitos números, uma sucessão infindável de números, aos milhares e, depois, aos milhões.

É com eles que a imprensa bombardeia quotidianamente o cidadão, originando um alerta da psicóloga Vera Ramalho, nas colunas do PÚBLICO. Diz ela que “estamos perante um fenómeno social e emocional de habituação, e de uma certa indiferença”. Quando a vítima não é “um dos nossos, tudo não passa de um breve momento de tristeza que se desvanece ao mudar de canal”. Ou seja, o cidadão já não se apercebe do drama, a menos que ele lhe toque directamente. Os mortos tornaram-se um conceito abstracto. “A morte de um homem é um drama; um massacre é uma estatística”, já dizia Estaline, que sabia do que falava.

Olhemos para a estatística, à falta de ver o drama. Ontem, dia 19, havia no mundo 110.306.289 casos covid-19, dos quais 62.112.930 estavam recuperados, e 2.441.610 óbitos. Em Portugal, esses casos eram 792.829, dos quais 687.462 estavam recuperados, e 15.754 óbitos. O mesmo se aplica aos chamados “números redondos”, tão do agrado da abertura dos noticiários e das manchetes dos jornais. “Portugal ultrapassa os quinze mil mortos!” Se o tema não fosse trágico, justificava-se um rufar de tambores apelativo e introdutório. A esta cacofonia de números veio juntar-se agora a variante propagandística dos 20, 100, 1000… “já” vacinados. “Portugal é o 36.º país do mundo…”

É claro que quando eu acabar de escrever estas linhas os números no mundo e em Portugal já estarão ultrapassados – como, aliás, já estavam no dia em que foram publicados. De que serviram então? Informaram ou são apenas uma carrada de entulho informativo atirado para cima dos cidadãos? A minúcia esconde o vazio noticioso.

Ao bombardear o cidadão com números astronómicos, que ele não digere e acaba por ignorar (quando não rejeitar), essa informação torna-se inútil. Para além de levar água ao moinho dos “negacionistas”, para quem o pânico gerado pela pandemia e alimentado pelos media obedece a um desígnio oculto, ela resulta apenas na desumanização da tragédia e num alarme social gerador de angústia colectiva. É uma informação sensacionalista. Não se discute aqui a necessidade dos números da pandemia serem noticiados. Discute-se, isso sim, a necessidade de os sublinhar. “X” milhões de positivos e “Y” milhões de mortos no mundo inteiro, hoje. Alguém se lembra de quantos foram ontem ou se dá ao trabalho de fazer a subtracção? É claro que não.

Por fim, e em jeito de post scriptum, esta prática noticiosa encerra em si uma contradição: a avalanche de uns números parece esconder a omissão de outros, os dos doentes que saíram dos cuidados intensivos e do internamento. A diminuição do seu número transmite uma ideia positiva, a de que a situação melhorou. Mas será que melhorou mesmo? Por outras palavras, os doentes que saíram desses cuidados correspondem a outros tantos cujo estado de saúde melhorou ou, pelo contrário, parte deles faleceu? Em ambos os casos, os números estão correctos, mas as causas para a boa notícia podem não ser as melhores, porque seriam as piores.

O vice-almirante Gouveia e Melo

Com o título “Gouveia e Melo, um submarinista em Pedrógão”, o jornalista Nuno Ribeiro traçou, no PÚBLICO de 4 de Fevereiro, um perfil do vice-almirante Gouveia e Melo. Esse perfil mereceu várias (e demasiado extensas, para efeitos de publicação nesta coluna) críticas do leitor Jorge Silva Paulo. Em síntese, o leitor, que conhece o vice-almirante “há 42 anos”, considera que o artigo é “apologético, senão mesmo propagandístico”, que não aborda todas as facetas da carreira do vice-almirante, que o jornalista devia ter identificado uma fonte que pediu o anonimato e que “há outras vertentes de Gouveia e Melo (...) que o artigo não focou, e que podia ter focado”.

Depois de uma troca de correspondência com o leitor e com o jornalista, o provedor consultou a documentação disponível no domínio público e, inclusive, os perfis do vice-almirante divulgados noutros media. Nada encontrou de relevante que contrarie o perfil em causa. Numa apreciação global, direi que, mais do que os jornalistas, são os factos e as opiniões das fontes ouvidas que elogiam Gouveia e Melo. No caso de Nuno Ribeiro, é certo que o jornalista, que não conhece o vice-almirante há 42 anos, podia ter ouvido outras e mais fontes, mas não é menos certo que um artigo de jornal é isso mesmo e não uma exaustiva tese de doutoramento.

Também o leitor Eduardo Miranda, de Vila Nova de Famalicão, disseca, numa longa correspondência, o perfil traçado pelo jornalista Nuno Ribeiro. “Bem escrito do ponto de vista linguístico”, o texto merece vários reparos do leitor no que respeita à identificação da fonte e à linguística. Escreve o leitor: “Refiro-me, em primeiro lugar, ao quinto parágrafo [do perfil], que transcrevo: 'O vice-almirante Gouveia e Melo e o tenente-general Marco António Serronha são expoentes no planeamento', sintetiza um especialista em temas militares que prefere o anonimato.’ (…) A ausência de vírgula entre ‘temas militares’ e ‘que prefere’ consubstancia uma oração subordinada adjectiva restritiva, precisando e especificando o sentido da frase, dando o que está para lá de ‘que’ como indispensável ao sentido da frase.”

As cartas dos leitores e as respostas do jornalista não são compagináveis na coluna do provedor. Respondendo aos reparos feitos, ainda que sem entrar nos meandros da análise linguística, o provedor considera que a única observação que pode fazer ao jornalista Nuno Ribeiro é que a identificação da fonte – “um especialista em temas militares que prefere o anonimato” – podia ser mais completa (trata-se de um civil, de um militar, de um dirigente partidário, de um (ex) governante…).

Ainda assim, este caso proporciona-me o ensejo de sublinhar duas evidências. A primeira é que o provedor existe para dar voz aos leitores e para convidar os jornalistas do PÚBLICO a ter presentes no espírito o Código Deontológico da profissão e o Livro de Estilo do jornal. A segunda é que os jornalistas, tantas vezes pressionados pelo tique-taque da hora de fecho, não podem trabalhar com um leitor sentado nos joelhos ou a espreitar por cima do seu ombro para escrutinar ao detalhe o que ele vai escrevendo. Tal não é praticável nem admissível.

O provedor errou

Por razões que se prendem com a volumosa correspondência dirigida ao provedor do PÚBLICO, só na crónica de 13 de Fevereiro de 2021 fiz eco das dificuldades encontradas pela leitora Ana Vargas para me contactar. Essa crítica foi-me enviada no dia 8 de Janeiro de 2021 e a resposta do director-adjunto Tiago Luz Pedro remete para a realidade dessa semana. Acontece que tanto a crítica como a resposta correspondem a uma situação que foi ultrapassada há quase um mês. De então para cá, o e-mail do provedor pode ser encontrado no final de todas as suas crónicas, na página que as agrega, no final do site e no seu menu lateral e ainda na ficha técnica do jornal. Ou seja, o provedor devia ter actualizado a informação de que dispunha ou ter datado as observações que produziu na sua coluna. Não o fez. O provedor errou. Pelo facto, apresenta o seu pedido de desculpas aos leitores, a Tiago Luz Pedro e ao PÚBLICO.

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