As tensões entre a liberdade individual, o combate à covid-19 e a alimentação saudável

Questionamo-nos se as medidas de saúde pública direcionadas para a promoção da saúde e prevenção da doença vão sair reforçadas ou fragilizadas depois desta pandemia. Uma pergunta para a qual não temos ainda resposta.

Um pouco por todo o mundo, têm-se verificado fortes tensões entre as medidas necessárias para reduzir o índice de transmissibilidade da covid-19 e a defesa da liberdade individual que conquistámos.

A vida em sociedade implica sempre alguns condicionantes à nossa liberdade individual, assegurando a velha máxima de que a nossa liberdade individual termina quando a mesma coloca em causa a liberdade dos outros. Contudo, esta discussão sobre a “limitação” da liberdade individual tem estado pouco presente quando se trata de comportamentos que influenciam a saúde, uma vez que as políticas de saúde ainda se encontram muito centradas no tratamento da doença, e não na sua prevenção. Este não é um assunto novo para quem trabalha na área da promoção da alimentação saudável, assim como em outras áreas relacionadas com a redução dos fatores de risco modificáveis para a prevenção das doenças crónicas como o tabaco ou o álcool. Medidas como a taxação das bebidas açucaradas, a limitação da oferta alimentar em determinados espaços públicos ou a regulação da publicidade alimentar dirigida a crianças são exemplos de medidas necessárias para a promoção da alimentação saudável e que podem conflituar com a liberdade individual.

Questionamo-nos se as medidas de saúde pública direcionadas para a promoção da saúde e prevenção da doença vão sair reforçadas ou fragilizadas depois desta pandemia. Uma pergunta para a qual não temos ainda resposta. Porém, podemos apresentar um conjunto de argumentos que sustentam diferentes opções de resposta possíveis.

Uma das novidades da crise sanitária foi a introdução no nosso consciente da influência dos atos individuais na saúde dos outros e, mais ainda, do facto de os nossos atos acabarem por obrigar a medidas restritivas e a influenciar a economia. Esta condição já existia na área alimentar, na medida em que a alimentação inadequada era já o principal determinante dos anos de vida saudável perdidos pelos portugueses, com fortíssimo impacto nos gastos do SNS, na capacidade de investir na saúde e, principalmente, com impacto sério na economia familiar de centenas de milhares de portugueses com familiares diabéticos, com acidentes vasculares cerebrais ou com cancros. Ou seja, optar por uma alimentação inadequada pode afetar seriamente a nossa saúde, a qualidade de vida, a economia familiar e de toda a sociedade. Indo ainda mais longe, comendo em excesso, privilegiando proteína de origem animal e alimentos altamente processados, podemos afetar seriamente a saúde do planeta. Será que esta pandemia nos colocou a pensar nisto?

Esta pandemia também sublinhou o que já sabíamos de outras pandemias. Que são os mais frágeis física e economicamente os que mais sofrem. Ou seja, os que não conseguem teletrabalhar, os que não têm acesso à teleducação ou até a uma casa decente que permite longos períodos de isolamento. No passado, eram os mais pobres e mais magros os mais afetados pelas epidemias. Hoje são os mais descompensados metabolicamente, isto é, os que comem mal e pouco exercício conseguem fazer, nomeadamente os obesos, os diabéticos e os hipertensos. Curiosamente, em Portugal existem mais diabéticos, mais obesos e mais hipertensos na população desfavorecida e com menos educação, numa proporção que por vezes ultrapassa os dois para um. Isto significa que promover melhores hábitos de alimentação e atividade física será uma forma eficaz de combater esta e outras novas pandemias infeciosas, mas pode implicar também mudar o paradigma, investindo mais no combate às desigualdades em saúde e na prevenção. Quando os cálculos desta pandemia forem feitos a nível global, iremos perceber que curámos maioritariamente quem podia pagar menos. Ainda bem. Mas no futuro talvez não seja possível. Valerá a pena a prevenção eficaz em todos os estratos sociais, antes que as desigualdades no acesso a cuidados de saúde cresçam.

Por outro lado, se a economia for fortemente afetada, tal como aconteceu nos anos 90 aquando das crises alimentares como a BSE ou doença das vacas loucas, a resposta europeia poderá ser a da criação de uma agência europeia de emergência médica, medicocêntrica, com o apoio da indústria farmacêutica, fortemente centrada no combate às doenças infeciosas emergentes tal como na altura se fez com a segurança higiosanitária e com a criação da EFSA – European Food Safety Authority. Isto poderia significar o investimento no combate à infeção (que também é necessário), mas em paralelo a um desligar relativo da prevenção e da promoção da saúde. Só passados muitos anos da sua criação, a EFSA abrandou o seu perfil em torno da segurança higiosanitária e recentrou parte da sua intervenção na prevenção da doença.

Por fim, esta epidemia exacerbou o fechar de fronteiras, a necessidade de produção própria e o receio do outro. Este modelo de resposta secular à doença infeciosa tende a repetir-se também no modelo de produção alimentar, com o apelo à produção nacional e à autossuficiência. Ambientalmente até poderá ter algum interesse, mas fará subir os preços, favorecerá a monotonia alimentar e possivelmente o aumento das desigualdades no acesso à alimentação saudável. Mais uma vez, os mais pobres serão os mais afetados.

Nada que já não soubéssemos de outras crises pandémicas desde a Idade Média. Depois da doença, chega habitualmente a fome, cresce o autoritarismo e as desigualdades. Desta vez não será diferente.

Pedro Graça, diretor da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto
Maria João Gregório, diretora do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável –​ DGS

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico​

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