A Europa perdida no mundo da geopolítica

Nem temos uma Europa genuinamente coerente com os seus valores internos na política externa, nem temos uma Europa forte e credível geopoliticamente nas grandes questões mundiais.

1. A história por vezes é cruel. A geopolítica, um termo criado pelos europeus na transicção do século XIX para o século XX — a autoria deve-se ao sueco Rudolf Kjellén —, é uma das maiores dores de cabeça da actual União Europeia (por simplificação, aqui designada também como Europa). As grandes potências europeias da primeira metade do século XIX, que eram também grandes potências mundiais, impulsionaram o pensamento geopolítico.

Nomes como Halford Mackinder (britânico), Karl Haushofer (alemão) e Paul Vidal de la Blanche (francês), este último com um trabalho precursor sobre a França do Leste e a Alsácia-Lorena, região no cerne do conflito franco-germânico, foram fundamentais nesse processo. Todavia a União Europeia, que tem esse passado inscrito, goste ou não dele, dá-se muito mal com a geopolítica do século XXI. Hoje os maiores actores mundiais não são europeus, nem se movem muitas vezes pelas regras e princípios que os europeus gostariam de ver amplamente postos em prática nas relações internacionais.

2. Na óptica europeia do pós-II Guerra Mundial, o mundo da política de poder e dos interesses, que é largamente o mundo da geopolítica, é um mundo do passado, sobretudo do passado trágico europeu de sucessivas guerras. Para o superar, a União Europeia criou instituições supranacionais e construiu uma (auto)imagem de um actor virtuoso das relações internacionais, demarcando-se das suas grandes criações políticas do passado: Estado soberano (vestefaliano) e nação/nacionalismo.

Quando em 2019 Ursula von der Leyen formou a actual Comissão Europeia e prometeu uma “Comissão geopolítica”, causou por isso uma certa surpresa e críticas. Geopolítica e União Europeia eram palavras que não faziam parte do mesmo léxico político. Mas a ideia surgiu no contexto de mundo em grande transformação que colocava novos problemas à Europa.

Os EUA, sob o governo de Donald Trump, afastavam-se do seu tradicional multilateralismo do pós-II Guerra Mundial e questionavam o valor da Aliança Atlântica (NATO). A China, durante muito tempo vista pelos europeus quase só por lentes económicas, como um novo grande mercado ou um investidor com grande liquidez, passou a ser percebida como um “rival sistémico”. Quanto à Rússia, que a geografia coloca como parte e em continuidade com a Europa, a relação turbulenta persistia.

3. Para não ser apenas um slogan, a ideia de uma “Comissão geopolítica” necessitava de uma concretização efectiva e credível. Mas aqui começa o maior problema de Ursula von der Leyen e da União Europeia. A Europa continua presa aos fantasmas do passado da primeira metade do século XX e enredada nas suas próprias contradições, o que não permitem transformar-se num actor geopolítico coerente, forte e credível.

Um entrave fundamental é o do conflito entre princípios e valores, por um lado, e interesses e poder, por outro lado. Certamente que o problema não é exclusivo da União Europeia, mas nesta atinge um elevadíssimo grau de intensidade pela sua própria natureza. Mais do que qualquer outro Estado-nação soberano no mundo, a União Europeia pretendeu guiar a sua conduta por princípios e valores — o Estado de direito, os direitos humanos, a democracia pluralista e a protecção das minorias estão inscritos nos seus textos fundadores “constitucionais”. 

Mas uma coisa é actuar assim num mundo onde esses princípios são amplamente aceites, outra é actuar num mundo que em grande parte os ignora. Como é fácil de intuir, é praticamente impossível ser um interveniente maior na geopolítica mundial sem recorrer à política de poder e à lógica dos interesses num mundo onde os maiores problemas seguem essas lógicas e estão para além das suas capacidades transformadoras da realidade social-internacional.

4. Para além do apontado, a experiência europeia de várias décadas de integração mostra ainda que raramente há coesão interna que suporte uma política externa assertiva nas questões mais importantes da geopolítica mundial. Por isso, o conflito dos princípios e valores com a lógica dos interesses e poder não é o único obstáculo de fundo para se criar uma Europa como um actor geopolítico forte e credível.

Grandes potências como a Rússia e a China — por vezes também os EUA, o que foi muito evidente com Donald Trump, tal como já tinha acontecido com George W. Bush na altura da guerra do Iraque —, alimentam a falta de coesão europeia. Naturalmente tiram proveito dessa debilidade quando o seu interesse nacional está em causa. Mas é necessário notar que não são apenas as grandes potências que facilmente superam no terreno geopolítico a União Europeia.

Médias potências como a Turquia têm conseguido tirar também partido das contradições e falta de coesão interna europeia, suplantando-a, apesar de teoricamente estarem muito aquém do poder do conjunto europeu. Na realidade, nas áreas geopolíticas onde a União Europeia tem um interesse directo apenas nos Balcãs — e mesmo aí só após as intervenções da NATO/EUA nos anos 1990 — é que esta exerce uma influência significativa.

Na zona tampão do Leste europeu, da Moldávia à Bielorússia, passando pela Ucrânia, a Rússia é o Estado geopoliticamente dominante como mostrou pela anexação da Crimeia. No Mediterrâneo oriental, outra área geopolítica de interesse directo para a União Europeia, a Turquia ignora-a largamente nos conflitos que a opõem à Grécia e a Chipre.

5. Com as contradições e debilidade apontadas as expectativas de uma Europa mais assertiva na geopolítica mundial (muito) dificilmente poderiam ser realizadas. Um choque de realidade — a desastrosa visita de Josep Borrel à Rússia em inícios de Fevereiro de 2021 — mostrou de forma bem crua a ilusão criada por Ursula von der Leyen. Importa lembrar que Josep Borrel é vice-presidente da Comissão Europeia e coordena a acção externa da União, sendo, por isso, uma peça central na ideia de uma “Comissão geopolítica”.

Mas o que aconteceu foi que diplomacia russa, através do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, deu uma lição à União Europeia. Ignorou não só as suas críticas sobre a detenção do político russo da oposição, Alexei Navalny, como, enquanto decorria uma conferência de imprensa conjunta, expulsava três diplomatas europeus — um alemão, um sueco e um polaco. Mais uma vez as contradições e fraquezas europeias ficaram demasiado expostas.

Uma coisa é condenar, por exemplo, a junta militar que tomou o poder na Birmânia (Myanmar) e deteve Aung Suu Kyi, bem como as perseguições e violações de direitos humanos sofridas pelos rohingyas. É uma área geopolítica distante, onde ninguém na Europa tem grandes interesses económicos, nem a Birmânia tem qualquer capacidade de retaliação, pelo que é fácil fazer uma política externa segundo princípios e valores. Outra coisa é aplicar sanções económicas à Rússia devido às violações de direitos humanos e outras, cancelando, por exemplo, o gasoduto Nord Stream 2, que liga à Rússia à Alemanha. Neste último caso, Angela Merkel e a Alemanha mostraram, de forma demasiado flagrante, como há “dois pesos e duas medidas” descredibilizando, na prática, mais uma vez a União Europeia.

A Europa apregoa elevados valores morais, mas cede quase sempre quando estão em causa interesses que envolvem grandes potências como a Rússia ou a China, ou até médias potências com capacidade de retaliar como a Turquia — basta ameaçar abrir a porta aos migrantes/refugiados. Este é o pior resultado para os europeus. Nem temos uma Europa genuinamente coerente com os seus valores internos na política externa, algo que os seus rivais e inimigos exploram até à exaustão para a descredibilizar; nem temos uma Europa forte e credível geopoliticamente nas grandes questões mundiais, ainda que à custa de abandonar a pretensão de uma política externa coerente com os valores internos. O que temos é uma Europa perdida no mundo da geopolítica que não faz bem uma coisa nem outra.

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