Porto Solidão ou o prodígio do mundo

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Uma vez cartografado o mundo, os navegadores ficaram presos às rotas marítimas mais rápidas e mais seguras. A literatura recebeu como legado os prodígios do desvio.” Juan Bautista Duzeide, escritor argentino

Diário de uma mulher no Porto da Solidão

No pomposo que costumam ser os homens ao mitificar a gesta simples das gentes, a Argentina transformou María Saéz Pérez de Vernet na “cronista da soberania argentina das ilhas Malvinas”. A mulher do primeiro comandante militar e político do arquipélago no Atlântico Sul, Luis Vernet, escreveu um diário de um quotidiano normal nas ilhas em 1829, a partir do qual um seu descendente, o poeta Marcelo Luís Vernet, dedicou 20 anos da sua vida a escrever uma obra em dois volumes que amplia, contextualiza e maximaliza o alcance do diário com a história de todas as viagens e expedições às ilhas anteriores à chegada dos Vernet a Puerto Soledad – hoje, na ilha a que os britânicos chamam de Falklands, leva o nome de Port Louis. Obra de uma vida que o poeta deixou inacabada quando morreu em 2017 e que os filhos concluíram, Malvinas mi Casa, recentemente publicado na Argentina, imita na sua linha narrativa aquilo que os exploradores antigos faziam nas suas explorações do desconhecido, deixando-se perder para encontrar rumo novo, resultando numa narrativa “tão original como eficaz para explorar tanto um território como as memórias, linguagens ou imaginários a ele vinculados”, como escreve Juan Bautista Duzeide no Página/12. Tornado o mundo previsível e com as rotas seguras estabelecidas, cabe à literatura embrenhar-se pelo desconhecido e explorar. Definida a cartografia, resta fechar os olhos e avançar à apalpadela do verbo nessa fossa das Marianas que continua a ser a imaginação humana e a arte que daí emana. A partir de um diário de seis meses de uma mulher que chega aos 29 anos a um porto de solidão no difícil clima do Atlântico Sul, com três filhos e mais um a caminho que já nascerá ilhéu, Vernet construiu um livro “feito de muitos livros e muitas viagens” e que “emergiu em forma de arquipélago”.

Até o hotel Explora

Mais de uma centena de mulheres, apoiadas pelas 36 famílias que compõem o honui, o conselho de clãs da Ilha da Páscoa, ocuparam esta quinta-feira o aeroporto mais remoto do mundo para impedir que um avião com 300 pessoas proveniente do território continental chileno aterrasse na ilha. O voo faz parte do “plano de retorno” (é o quinto) com que o governo pretende enviar para casa os rapanui e os residentes que ficaram presos longe de casa por causa da pandemia. Mas, quem protesta, reclama pelos abusos cometidos nesse plano de retorno que permite a viagem a quem não é da Páscoa, seja novos residentes em busca de trabalho, seja gente que procura apenas o único lugar do Chile sem casos de covid-19 há mais de 300 dias, os chamados turistas covid. A presença das mulheres na pista do aeroporto Mataveri levou as autoridades a adiar o voo e a marcar uma reunião para segunda-feira, para tentar desbloquear a situação. “Nós, como comunidade, temo-nos mantido livres de contágios e esta abertura põe-nos completamente em risco”, disse Ana Parakati, uma das porta-vozes do protesto, ao El Ciudadano. “Todos os esforços que se fizeram para manter a população saudável vão para o lixo se se fizer isto a curto prazo”, acrescentou. Além disso, aparentemente há verdeiros rapanui, a etnia originária da ilha, que não conseguiram lugar no voo porque parte dos assentos estava ocupada por gente que vai trabalhar no hotel Explora. Porque, já sabemos, mesmo no meio do Pacífico, a mais de dois mil quilómetros de outro pedaço de terra (Pitcairn), há nomes que se justificam a si mesmos.

Pensão completa para a covid

Com pandemia a controlar as idas e vindas do mundo, há quem se deixe tentar pelo turismo livre de constrangimentos por causa da covid. O México, governado pelo populista Andrés Manuel López Obrador, apesar de ter mais de dois milhões de infectados e ser o terceiro país com mais mortos pela doença (superando os 177 mil), está a atrair o turista que prefere destinos que não lhe exigem nada em detrimento de outros locais que, com menos incidência do coronavírus, exigem testes de covid a quem os visita. Como conta à BBC Mundo Pierre, um jovem francês a residir em Nova Iorque: “Decidi ir ao México porque não pediam testes de covid-19 para entrar. Queríamos ir às ilhas Turcos e Caicos, mas havia muitas restrições. Assim que, embora o México não fosse a nossa primeira opção, decidimo-nos pelo mais fácil”. O governo mexicano, alheio às muitas críticas à sua política de fronteiras abertas ao turismo que chegue de avião, garante que a sua decisão não é económica, mas se baseia na conclusão de que restringir a entrada de viajantes estrangeiros não tem um efeito visível na redução de número de contágios. E com isso, em 2020, no ano classificado como “o pior ano da história do turismo”, o México foi o terceiro país mais visitado e, enquanto o turismo caía no mundo 74% em relação a 2019, conseguiu que a sua descida andasse à volta de 45%. Para isso, há hotéis que passaram a incluir no regime de pensão completa, testes de coronavírus e até hospedagem gratuita se alguém for infectado.

Direito a seguir pessoas

Felwine Sarr, o autor de Afrotropia, passou o ano passado por Lisboa para falar sobre o relatório Restituir o património africano: para uma nova ética relacional, que co-escreveu com Bénédicte Savoy, contribuindo para um debate intenso, que já vinha de antes e se ampliou, sobre a restituição das obras de arte que os colonizadores roubaram no continente africano durante a sua ocupação e exploração. O pensador senegalês, que também é músico, estudou economia em França e é professor de Filosofia Política Africana e da Diáspora na Universidade de Duke, nos EUA, depois de ter criado um Centro de Investigação em Civilizações, Religião, Arte e Comunicação no Senegal. Organizador desde 2016, com Achille Mbembe, dos Ateliers do Pensamento, em Dacar, publicou agora em França uns cadernos de viagem (La saveur des derniers mètres) que percorrem, em 26 capítulos, caminhos que vão desde a sua ilha de Niodior, na região do Saloum, cenário de pântano e mangais que a Unesco classificou como património mundial, até Nova Iorque, passando por Lisboa, Douala, Roma, Port-au-Prince, Kampala, México, Cairo. Mais do que um percurso este “sabor dos dos derradeiros metros” é uma deambulação que, ao invés de descrições, reflecte mais sobre os sítios e as pessoas. “Viajar permite olhar de soslaio, em relevo, à vez dentro e fora”, afirmava à France Culture Sarr, que defende a necessidade de “considerar a mobilidade como um direito fundamental” do ser humano. Ao pensador os lugares não lhe interessam tanto enquanto cenário para fotografias mais ou menos bonitas, interessa-lhe o olhar do outro: “Não sou atraído por lugares. Quando chego a uma cidade, não corro a ver lugares imperdíveis. Sigo-os pelas pessoas que lá encontro.”

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