Hepatite C: a “pandemia esquecida”

Continua a haver dezenas de milhares de portugueses com hepatite C por identificar, por tratar e por curar. Para esses, não podemos oferecer a vacina anti hepatite C – que não há –, mas devíamos oferecer a cura, pelos tratamentos de que dispomos.

Se lembrar é uma forma de honrar, recordemos, pois, uma pandemia que assola o mundo há décadas, que teimosamente persiste entre nós e da qual – quase ironicamente, atendendo ao momento em que vivemos – poderíamos, com algum engenho e arte, tornar possível libertar-nos do seu jugo. Não para reverenciar o vírus que a provoca, mas para lembrar o legado dos muitos que dedicaram a sua vida científica, académica e assistencial ao seu estudo e conhecimento, ao seu controle e ao sonho realista da sua eliminação. Sim, a hepatite C é, tristemente, essa “pandemia esquecida”.

Nem o abalo telúrico (pelo espanto e consciencialização) gerado pela atribuição do Nobel da Medicina 2020 aos investigadores basilares da hepatite C conseguiu fazer tremer e agitar proficuamente as vetustas fundações corporativas, que persistem em olhar de soslaio e indiferença, sem qualquer sobressalto cívico, a heróica possibilidade de eliminar a hepatite C no nosso país e no mundo.

Quando Estocolmo fez soar os trompetes sobre o “impacto na saúde da humanidade” – como o secretário-geral do Comité Nobel classificou a envergadura da descoberta desses intrépidos investigadores –, o mundo lidou perante essa boa nova com intensidades diversas, num espectro largo de categorias de reacções, reflectindo a natureza dos públicos que por isso se agitaram e manifestaram. De entusiasmo e jubilo, no seio da comunidade científica historicamente a si associada; de esperança e crença, nos que vislumbraram mais oportunidade de despertar consciências; de alguma nostalgia e aquietação, nos que após anos de combate viram indirecta e longinquamente o reconhecimento do seu trajecto profissional.

A nós, só nos interessa a esperança. Aquela que faz confiar, com perseverança, na tomada de consciência, pela generalidade da população e, sobretudo, pelos decisores políticos da qual possa resultar o fim do esquecimento.

Um outro Nobel (mas da Literatura) escreveu há quase 100 anos que “se consciência significa memória e antecipação, é porque consciência é sinónimo de escolha”. Disse-o Henri Bergson, também filosofo e sociólogo (numa conjugação feliz para a narrativa da hepatite C) a remeter-nos para a tal... escolha. Escolha, ou doutra forma dita, decisão, decisão de assumir, com a coragem de que ainda estamos carenciados, que não se pode deixar perpetuar essa “pandemia esquecida”. Ainda para mais, esta pandemia esquecida não precisa de quarentenas nem de confinamentos. Precisa de planificação, organização e decisão. Precisa de derrubar os muros da indiferença e burocracia.

A designação “pandemia esquecida” foi durante décadas consagrada pelos historiadores e epidemiologistas à pandemia da gripe de 1918-1920, que variadas e coloridas expressões motivou: gripe “espanhola”, gripe pneumónica, the Pale Rider... (ressalve-se que não o próprio Clint Eastwood, director, produtor e protagonista do western homónimo). A referência ao esquecimento, nesse caso, reflectia a quase ausência de registos e narrativas que permitissem olhar estudioso, atento e minucioso, dos impactos pessoais e familiares, para além dos sociais, que essa tragédia universal causou. Porém, esta pandemia da hepatite C está esquecida aqui e agora, num momento extraordinário, improvável e simultâneo, global e globalizado, em que vivemos. A pandemia covid-19 é a primeira gerada em pleno mundo digital, no espaço sideral do virtual omnipresente, na explosiva frente mediática das redes sociais. A expressão dos dramas individuais, familiares e colectivos, em simultâneo e em uníssono, acaba por inundar e sufocar todas as outras condições sanitárias, das mais triviais às mais complexas, relacionadas ou não com outras infecções, mesmo as situações oncológicas mais comuns exigentes e apelativas, também elas afogadas na dialéctica covid-19.

Mas acordemos, pois, para a outra realidade, a tal modernamente “esquecida”. Continua a haver dezenas de milhares de portugueses com hepatite C por identificar, por tratar e por curar. Para esses, não podemos oferecer a vacina anti hepatite C – que não há –, mas devíamos oferecer a cura, pelos tratamentos de que dispomos, e com os quais dois governos de Portugal se comprometeram com a Organização Mundial da Saúde a acabar com a dita hepatite C.

Para isso e por todos esses doentes, há que ir literalmente ao seu encontro: sabemos que persistem nas franjas mais vulneráveis da população, mas também persistem nos grupos etários expostos no passado a circunstâncias e características sanitárias do país que entretanto se modificaram – mas que deixaram neles o seu traço silencioso em tantos que não suspeitam minimamente poderem ainda estar infectados.

As barreiras à identificação e ao acesso à medicação antivírica a todos os que precisam existem ainda, indiferentes e estáticas, num imobilismo acusador para os que verdadeiramente podem resolver este problema. A oportunidade de colocar no terreno um plano estruturado de acção, destinado exclusiva e determinadamente à eliminação da hepatite C em Portugal, é única: agora que a população se inteirou das semânticas televisivas dos rastreios e testes serológicos, agora que todos reconhecem como identificar uma doença vírica (que, ainda para mais, é facilmente tratável e curável!), agora que se entende que a democratização do acesso à medicação (sem estorvos burocráticos) é mandatória atendendo à excepcional eficácia das armas de que dispomos, porque não ter a lúcida coragem, há tanto tempo apelada, de permitir que definitivamente Portugal faça, de novo, história e exemplo? O que esperamos para tornar uma pandemia languidamente esquecida numa pandemia activamente resolvida?

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