Costa, Ventura e os Outros: das incoerências do sistema às reacções anti-sistema

Quem é que é mais responsável? Quem cria as condições para o populismo florescer ou quem se aproveita disso?

No momento em que o debate sobre o adiamento das eleições autárquicas entrou na agenda, um estudo da Eurosondagem atribui ao Chega o terceiro lugar nas intenções de voto em eleições legislativas e paralelamente surgem mais vozes críticas sobre a gestão da pandemia, vale a pena reflectir sobre os efeitos políticos da realização das presidenciais em pleno confinamento.

O tema forte do período pós-presidenciais foi o resultado de André Ventura. Muitos já tentaram explicar o que foi surpreendente para muitos outros, mas é importante olhar também para o contexto da campanha. Enquanto os números de contágios e de doentes internados com covid-19 se descontrolavam e se assistia a uma sucessão de hesitações nas decisões do Governo para combater a pandemia, desenrolava-se simultaneamente uma campanha eleitoral. Ao mesmo tempo que se pedia às pessoas para ficarem confinadas em casa, os candidatos andavam na rua em acções de campanha presenciais a apelar ao voto em massa no que mais parecia uma realidade paralela. A realização da campanha eleitoral no terreno num país confinado passou uma mensagem contraditória para a população, que não só não contribuiu para convencer as pessoas da gravidade da terceira vaga da pandemia, como em nada contribuiu para a credibilidade do sistema político e para a confiança dos cidadãos no Governo e nas instituições políticas em geral.

Os eleitores que votam em propostas populistas anti-sistema como as de André Ventura e do Chega costumam revelar níveis muito baixos de confiança no sistema político e nas instituições políticas. Isto tem sido amplamente demonstrado em estudos noutros países e em inquéritos transnacionais, como o European Social Survey (ESS). A este respeito, não deixa de ser interessante uma diferença entre o norte e o sul da Europa detectada nos inquéritos do ESS: as pessoas do norte da Europa tendem a confiar mais no Parlamento nacional que no Parlamento Europeu, enquanto nos países do sul da Europa se verifica precisamente o contrário. A qualidade das instituições políticas nacionais também tende a ser avaliada de forma mais negativa no sul, o que se reflecte naturalmente nos níveis de confiança nas instituições políticas. Isto significa que existe predisposição para optar por propostas anti-sistema, pelo que devia haver uma preocupação acrescida com a eficiência e a coerência na actuação das instituições políticas.

O sucesso do populismo e das propostas anti-sistema tem sido explicado através de reacções a crises graves e a várias desigualdades (rendimentos, emprego sem precariedade, cuidados de saúde, educação, subsídios sociais, etc., mas também de género, estilos de vida, etc.), que estão por sua vez relacionadas com sentimentos de incerteza e percepções de ameaça. A incapacidade das instituições políticas, em particular do Governo e do Parlamento, de resolverem os problemas, de comunicarem de forma clara e eficaz, bem como as falhas sucessivas das políticas implementadas sem responsabilização ou mudança drástica das políticas e dos responsáveis pelas políticas, torna o descrédito das instituições não apenas provável, como muito provável. Como resposta, as pessoas voltam-se para propostas alternativas, anti-sistema, nem que seja como voto de protesto. Muitas destas pessoas não se identificam com tudo o que políticos como André Ventura dizem e representam, mas sentem necessidade de demonstrar a sua insatisfação com a política tal como tem sido conduzida. O problema é que isto amplifica, por vezes artificialmente, a importância das propostas anti-sistema e do seu ideário.

Para além de expor incoerências nos processos de decisão política, as presidenciais também aumentaram a polarização. Mais do que acentuar as diferenças entre dois extremos, polarização significa que estes se excluem mutuamente com o argumento de que a posição do outro, ou o próprio, não são legítimos. Enfatiza-se o antagonismo, a estigmatização do oponente, e ideologicamente os argumentos afastam-se cada vez do centro e, consequentemente, do espaço dos compromissos. Na campanha das presidenciais o discurso e os termos usados por André Ventura e os seus insultos distanciaram ainda mais as posições e, como hostilidade normalmente gera mais hostilidade, até a episódios de violência verbal e física (em Setúbal) assistimos.

Mas André Ventura também foi colocado no centro da discussão por algumas das outras candidaturas. Sugerir a exclusão, em vez de desconstruir os argumentos da direita populista radical, significa alienar parte do eleitorado e acentua ainda mais a divisão entre “nós” e “eles”. Este tipo de estratégia geralmente despoleta a “vitimização” do outro lado e é muito provável que tenha beneficiado André Ventura. A esquerda cometeu outro erro estratégico ao não apresentar uma candidatura moderada e ao fragmentar-se em várias candidaturas, que tinham poucas diferenças entre si. A visibilidade que a esquerda radical e os seus argumentos obtiveram com a campanha induziu a uma maior reacção do outro lado, da direita radical, que é aliás mais radical (menos moderada na radicalização) do que a esquerda radical em Portugal.

Geralmente, quanto mais polarizado o ambiente político, maior a tolerância para ideias extremas e maior probabilidade de radicalização, o que a médio-longo prazo cria mais problemas. Desvalorizar o resultado de André Ventura também é um erro. É, aliás, a continuação dos mesmos erros que fizeram com que o Chega surgisse e elegesse um deputado em 2019 e que fosse crescendo em visibilidade e em votos desde então. É preciso fazer uma reflexão abrangente para compreender os diferentes tipos de motivos pelos quais algumas pessoas votam em André Ventura e no Chega. É preciso também proteger os grupos que têm perdido direitos e assegurar mensagens inequívocas e respostas substantivas para os seus problemas. Para além disso, é essencial aumentar a eficiência, bem como a transparência e accountability, das instituições políticas, sob pena de as propostas anti-sistema continuarem a crescer, não só à direita, mas também à esquerda, como resposta. E não seria útil planear e preparar com tempo um eventual adiamento das autárquicas, para o caso de ser necessário, criando as condições para a realização de uma campanha que promova discussões sobre o que interessa às pessoas e assegurando ao mesmo tempo que todos possam votar sem constrangimentos?

Resta, por fim, perguntar: quem é que é mais responsável, quem cria as condições para o populismo florescer ou quem se aproveita disso?

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