O Rei vai nu (ou o dia em que a FCT desbaratou o grau de doutoramento)

Não é aceitável que a principal agência de financiamento científico em Portugal decida agora que, afinal, já não é necessário o grau de doutoramento para liderar uma equipa de investigação.

Vivemos tempos difíceis em Portugal. O elevado número de óbitos, a pressão sem precedentes no SNS, a falta de acompanhamento médico para pacientes não covid-19, as várias pequenas e médias empresas em risco de falência, uma recessão histórica cujo impacto a longo prazo não conseguimos começar a prever, as vacinas que demoram a chegar… No meio de um cenário tão desanimador, os problemas dos investigadores científicos podem parecer insignificantes, mas não fossem anos de investigação em diversas áreas do saber, e a pandemia de covid-19 estaria muito mais longe de estar resolvida. Como já foi amplamente explicado por vários cientistas nacionais, o conhecimento necessário para o desenvolvimento, em tempo recorde, de uma vacina é o resultado de décadas de investigação fundamental. Quero acreditar que nos dias de hoje a sociedade portuguesa reconhece a importância do conhecimento científico que é gerado em Portugal, e por portugueses pelo mundo fora.

Depois de um aumento histórico no financiamento de projectos da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) em 2017, o ano passado viu o mais drástico corte em toda a história da ciência nacional, com apenas 5,3% de aprovação de entre todos os projectos submetidos. Numa tentativa de minimizar este impacto, foram apresentados alguns argumentos pouco convincentes, e rapidamente se lançou o aviso de um novo concurso, concurso esse que teria algumas regras muito distintas, com um objectivo claro: reduzir o número de candidaturas e, de forma artificial, aumentar a taxa de sucesso. É importante perceber que existem razões relevantes que justificam medidas que levem à redução do número em massa de candidaturas a projectos nacionais, mas a forma como foi feita, para além de levar a várias situações de injustiça, foi comunicada com pouca inteligência pedagógica, e em vez de abordar o elefante na sala, tentou-se mudar o foco da discussão para outros assuntos mais efémeros e não estruturais. Seria melhor ter-se abertura e coragem para explicar à comunidade científica, com transparência, o que se está a passar com o processo de candidaturas a projectos. Sobre este importante assunto, dedicarei outro dia para o abordar.

Decidiu então a FCT que um determinado investigador só pode estar associado a uma candidatura como investigador responsável (o chefe da equipa) ou como co-investigador responsável (o número dois), exigindo em contrapartida uma dedicação de pelo menos 35% do seu horário de trabalho (para o chefe) ou 25% (para o número dois). Exigir uma dedicação mínima para delegar num investigador responsável (ou co-responsável) a gestão de centenas de milhares de euros de fundos públicos faz todo o sentido; proibir que os investigadores se organizem da forma mais lógica e competitiva é dar um verdadeiro tiro no pé. E se esta decisão levou ao desespero de muitas equipas de investigação, que tiveram que cancelar compromissos prévios e descontinuar colaborações científicas de há muitos anos, o verdadeiro problema surgiu este mês, quando a FCT decide tornar público um esclarecimento com várias FAQ (perguntas e respostas colocada frequentemente), que em alguns casos são, na falta de melhor palavra, lamentáveis.

Esclarece então a FCT que “um investigador não doutorado pode submeter uma candidatura no presente concurso de projectos”, deixando depois o alerta que, sendo o currículo do chefe da equipa do projecto um dos critérios mais importantes na avaliação, seguramente isso terá impacto na classificação final. Isto é de bradar aos céus! A sério FCT? Limita-se a submissão de candidaturas de investigadores doutorados, que segundo a legislação em vigor (DL124/99) são aqueles a quem de quem se espera a coordenação de projectos, para se abrir a porta a uma enchente de submissões por estudantes, aos quais a mesma legislação prevê apenas a associação a projectos de investigação sob orientação de um investigador ou professor do ensino superior...

Sem nenhum desmérito pelos estudantes de mestrado e doutoramento, que são peças fundamentais no ecossistema científico, os graus académicos qualificam os seus titulares para determinas funções e responsabilidades, e não é aceitável que a principal agência de financiamento científico em Portugal decida agora que, afinal, já não é necessário o grau de doutoramento para liderar uma equipa de investigação. Sigo atentamente as políticas nacionais de investigação em ciência e tecnologia, e não me recordo de ver tão grande disparate.

Para além de ser um grande contrassenso (então não se pretendia limitar o número de candidaturas?), é evidencia de uma falta de rigor nestes processos. É que o próprio regulamento em vigor da FCT, no seu artigo 6, define claramente que “o investigador responsável do projecto possua, ou venha a possuir, um vínculo laboral com a instituição ou que titule de uma bolsa de pós-doutoramento”. Logo, não é compreensível como a FCT pode considerar que um não doutorado possa ser o investigador responsável de uma candidatura. Disto só se pode tirar uma de duas conclusões: ou estamos perante um caso crasso de incompetência e desconhecimento das regras e leis nacionais, ou então estamos a tentar subverter, muito sorrateiramente, as regras com o único objectivo de se tentar beneficiar alguns interesses instalados. Em qualquer um dos casos, a situação é grave, e espera-se que seja corrigida atempadamente. A Associação Nacional dos Investigadores em Ciência e Tecnologia (ANICT) já enviou dois ofícios à FCT sobre este assunto, até agora, ainda sem resposta.

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