Uma falsa questão

Para Duncan Simpson, que assinou no PÚBLICO o artigo “Os portugueses foram vítimas ou cúmplices da PIDE?”, as “vítimas” seriam os poucos que se teriam oposto ao Estado Novo e os “cúmplices” a grande maioria da população. Trata-se, no mínimo, de uma visão cor-de-rosa do Estado Novo.

Publicou o PÚBLICO, a 14/02/2021, o artigo “Os portugueses foram vítimas ou cúmplices da PIDE?”, da autoria de Duncan Simpson, o que me suscita alguns comentários.

Desde logo, o título é desadequado pois houve efectivamente vítimas e a pergunta retórica desmerece-o.

Ao querer chamar bombasticamente a atenção do leitor através de um absurdo lógico (como se alguma vez um povo pudesse ser todo ele cúmplice de uma polícia política), o autor poderia apenas estar a arranjar um título apelativo.

No entanto, a dicotomia “vítimas” e “cúmplices” é reforçada quando se opõe a minoria de opositores ao vasto “resto da população”, o que resulta em sugerir que uma grande maioria de portugueses aderiu e até manipulava a PIDE. As “vítimas” seriam os poucos que se teriam oposto ao Estado Novo; os “cúmplices” a grande maioria da população: esta é a visão de Duncan Simpson. Trata-se, no mínimo, de uma visão cor-de-rosa do Estado Novo.

Depois, o autor abre caminho, depreciando outros historiadores. Começa por citar Irene Pimentel e Fernando Rosas como prisioneiros daquilo que chama “memória ‘antifascista’ da PIDE”, repetindo as aspas de antifascista sempre que se lhe refere. Porquê as aspas? Simpson deveria explicá-lo. Além de que, em qualquer das obras citadas dos dois autores anteriores, estes tratam as formas de ligação entre a PIDE e sectores da população, chegando até Fernando Rosas a entender estas ligações como uma das formas do “saber durar” salazarista, sendo um dos segredos da sua longevidade. O tema de Simpson está, pois, presente em outros autores, pelo que não havia necessidade de entrar assim em campo.

E o artigo continua, utilizando tópicos muito caros à historiografia e às Ciências Sociais como a tão falada “história dos de baixo”, procurando Simpson inserir-se, assim, numa corrente de modernidade, legitimando o seu lugar – que começara por desbravar à força.

A sua modernidade também estaria nas suas novas referências bibliográficas num quadro em que “a historiografia portuguesa contrastaria fortemente com os desenvolvimentos da bibliografia internacional”… só que, por exemplo, Gellately também aparece em textos de Irene Pimentel e já em 2007.

A certa altura, Duncan passa para uma forma de escrita menos chamativa, entrando naquilo que será um registo mais científico. Afirma pretender “analisar as interacções entre a polícia política e os cidadãos comuns, aqui entendidos como a esmagadora maioria dos portugueses que nunca se envolveu em actividades políticas. Trata-se de ir para além da narrativa tradicional da repressão e da violência para melhor entender o papel da PIDE na organização da sociedade durante o Estado Novo”. Com este tom mais calmo, Simpson volta a piscar o olho a quem se interessa pela história dos de baixo: volta a falar dos “cidadãos comuns”. Impõe-se perguntar: não cabem no conceito de vítimas? Não foram objecto de repressão pela polícia política que era a PIDE?

Um outro elemento de modernidade de Simpson seria a perspectiva comparativa. Antes do mais, esta já preocupou António Costa Pinto, Fernando Rosas, Irene Pimentel. É nesta óptica comparativa que Simpson enuncia breves analogias das relações entre o povo-polícia política em Portugal com estas relações na RDA. Pretende-se talvez ganhar mais eco no público com esta rapidíssima justaposição, já que a adesão emocional à crítica das ditaduras num e no outro país é tão generalizada!

Isto não é maneira de fazer História!

A questão das relações entre a PIDE e a população não é nova, não foi agora descoberta… basta consultar os jornais do pós-25 de Abril para ver tantos e tantos desmentidos de pessoas anónimas que afirmavam não ser da PIDE, o que por si só mostra a penetração da PIDE na sociedade mas também o medo e a desconfiança da própria sombra, que o Estado Novo imprimiu e difundiu generalizadamente!

Merece investigação, sim, a análise das relações da PIDE com a população na sua diversidade e multiplicidade, relações estas tomadas como objecto de estudo principal mas sempre com uma contextualização que não remeta para a categoria de “narrativa tradicional” o carácter violento e repressor da polícia política.

Nota: Tudo o que está em itálico são citações do texto de Duncan Simpson

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