Ler não engorda

Mesmo que ler engordasse, haveria por aí muitos trinca-espinhas alérgicos a livros, livrarias e bibliotecas.

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Rui Gaudencio

Ficámos a conhecer a frase do título há mais de duas décadas, quando conseguimos, pela primeira vez, “tempo de antena” no jornal para a literatura infanto-juvenil. Foi o escritor António Mota que a disse, ao recordar ao PÚBLICO uma máxima de um encontro literário em Cáceres. “Ler não engorda” estava inscrito num cachecol. O autor, um dos que mais vendem neste segmento, repete a frase ainda hoje sempre que visita escolas. Um sucesso junto dos miúdos.

Desde esse primeiro trabalho, batemo-nos por criar novos leitores e por dar a conhecer o que de melhor se faz e publica para os mais novos. Cirandando de suplemento em suplemento, secção em secção e em diferentes espaços no PÚBLICO, sempre incentivámos as famílias a frequentar livrarias e a deixar as crianças escolher os livros que mais lhes agradassem. Mesmo que não fossem os preferidos dos adultos.

Acreditamos que há um livro certo para cada um de nós. Aquele que nos faz querer ler outro e mais outro e outro ainda. Mas há que explorar. As livrarias e as bibliotecas são os melhores espaços para essa prática e esse prazer. O Plano Nacional de Leitura sabe disso, mas ainda não lhe escutámos a voz.

Nunca nos incomodou a venda de livros nas grandes e médias superfícies, ao lado dos legumes e de outros bens de primeira necessidade, nem nas agências dos Correios ou outros lugares. Gostamos que os livros se vendam em todo o lado e que as famílias tropecem neles, mesmo nos momentos em que não estão a procurá-los.

No entanto, é nas livrarias independentes que há mais diversidade, melhor qualidade, maior liberdade. Os grandes grupos editoriais convivem com as pequenas editoras, há livros de autor, álbuns ilustrados maravilhosos, edições estrangeiras, livros antigos e, mais importante ainda, há livreiros. Pessoas que nos aconselham, que nos conhecem e conhecem também os livros que ali têm para nós. Se não os tiverem, tudo farão para os encontrar. Também são leitores.

Que felizes ficámos quando as livrarias de maior dimensão começaram a reservar espaços confortáveis para os miúdos permanecerem e manusearem os livros à vontade. Mais felizes ainda quando apareceram livrarias especializadas na literatura para a infância ou a ela dedicaram grande parte do seu catálogo: Mercado Azul (Guimarães), Centésima Página (Braga), Papa-Livros e Salta-Folhinhas (Porto), Livro Voador e Mãos à Arte (Matosinhos), Faz de Conto e Livraria do Convento de São Francisco (Coimbra), Doninha Ternurenta (Ovar), Gigões e Anantes (Aveiro), Aqui Há Gato (Santarém), Cabeçudos, Baobá, It’s a Book, Didatic by Edicare (Lisboa), Gatafunho (Oeiras), Minutos de Leitura e Prodidáctico (Cascais), Hipopómatos na Lua (Sintra), Bichinho de Conto (Óbidos), Até à Lua (Lagos). E outras que nos terão escapado nesta enumeração.

Infelizmente, muitas famílias só entram nas livrarias uma vez por ano, para a compra de livros escolares. Agora, nem assim. É pena.

Por isso nos juntamos aos que estão perplexos e revoltados com a impossibilidade de as livrarias poderem abrir ou vender livros à porta (“postigo”, chamam-lhe agora). Como se houvesse o risco de a multidão se acotovelar para ir comprar livros, pondo em perigo a saúde pública.

“O Governo que vá passear e nos deixe trabalhar”

E vem-nos à memória as palavras do “Livreiro Velho”, Manuel Medeiros, que abriu a Culsete em Setúbal, em 1973, com Fátima Medeiros, e a manteve aberta 40 anos: “Sem cultura não há progresso e sem leitura não há cultura.” Escreveu-as no seu livro Papel a Mais (Esfera do Caos, 2009), com o pseudónimo Resendes Ventura.

Nas vésperas do IV Encontro Livreiro, em 2013, disse ao PÚBLICO: “Vamos lutar para vencer as queixas. Se temos mãos, não podemos estar à espera que Deus nos dê pão. E o Governo que vá passear e nos deixe trabalhar.” 

O “Livreiro Velho” também vem à memória de António Mota, quando lhe disse, com o seu ímpar sentido de humor, que esperava o dia em que a grande notícia fosse: “Livrarias assaltadas em todo o país”.

O assalto parece estar a dar-se, mas não da forma que Manuel Medeiros desejava.

Voltemos então ao título: “Ler não engorda”. Mesmo que engordasse, haveria por aí muitos trinca-espinhas alérgicos a livros, livrarias e bibliotecas.

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