Não pagar impostos sobre coisas que dão prazer

Não temos que magoar os outros para ficarmos felizes. Mas acho que nos faria bem, a mim, à mãe e a toda a gente, conhecermo-nos melhor, respeitarmo-nos e gostarmos mais de nós próprios.

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@designer.sandraf

Querida filha,

Como sabes, há uns meses, adoptámos mais ou menos um cachorrinho que vive com as ovelhas do senhor Jaime. Demos-lhe festinhas quando era bebé, e agora salta as vedações todas para vir ter connosco quando sabe que estamos em casa. Como com o confinamento temos estado muito mais por aqui, tornou-se uma visita constante. E são tão parecidos com crianças, que nós transformamo-nos em mães num abrir e fechar de olhos.

Escrevo-te este relatório sobre tudo o que aprendi nesta “experiência social”, na esperança do diagnóstico de perita em educação infantil, mãe de quatro, e dona — ai, já não se pode usar este termo! — da Amora.

Sobre os cachorrinhos:

  1. Ficam marcados pela primeira experiência de mimo. E de medo. Vence todos os obstáculos para receber de nós mais uma festinha, mas quando vê o pastor volta imediatamente para o lado certo da vedação (onde é suposto viver), e fica muito quietinho, na esperança de que ele não castigue a transgressão. Constato que o medo é mais forte do que o amor. E que o pastor, não lhe chama medo, mas “respeitinho”.
  2. Ficam marcados pela pessoa que lhes dá de comer. Para mim, daqui não decorre que procurem a minha companhia apenas por causa disso. O pastor está seguro de que é exclusivamente por causa disso.
  3. São programados para ganir de maneira a conseguirem de nós protecção e cuidado. Ou seja, somos programados a reagir aos seus apelos, assim como ao choro de um bebé. É (felizmente) mais forte do que nós.
  4. São pavlovianos, como o cão do senhor Pavlov demonstrou. Se dois dias seguidos lhe puseres a trela antes de lhe dar de comer, ao terceiro vai buscar a trela.
  5. A maneira de os ensinar a fazerem o que queremos é por castigo e recompensa.
  6. Adoram brincar. Mas, descobri, brincar com uma bola não é inato.
  7. A hereditariedade conta. Não é politicamente correcto dizê-lo mas, tendencialmente, um cão de caça vai buscar e trazer, um cão pastor desde mínimo sabe arrebanhar as ovelhas e por ai adiante.

O que aprendi sobre mim:

Ponto Único: Sei que odeias o conceito, mas assumo que sou facilmente “manipulável”. Em vez de me sentir feliz, fico rapidamente ansiosa porque não fui passear com ele, está com frio e ficava melhor em frente da lareira, e depois zango-me com ele por me “exigir” o que não me apetece dar-lhe.

O problema obviamente não dele, mas MEU, que imediatamente coloco tudo numa questão de Deve e Haver, que tenho imensa dificuldade em aceitar que tenho direito a não querer abdicar da minha liberdade para ter um cão, que gosto dos meus netos mas não preciso de estar sempre com eles, que adoro os meus filhos, o meu marido, dos meus amigos, mas que não preciso de abdicar das mil coisas de que gosto de fazer sozinha por causa deles. Que isso não significa que sou “egoísta” e “preguiçosa”, e que tenha de constantemente de estar a pagar impostos sobre as coisas que me dão prazer.

E é isto. Aguardo ansiosamente a tua resposta.


Querida Mãe,

Tantas coisas que já aprendeu com esse cachorrinho! E é espantoso como ele conseguiu desencadear a sua “culpa de mãe” em menos de dez minutos.

Fico feliz que tenha chegado a esse insight tão verdadeiro: não nos damos ao direito de ser felizes ou de estar bem SE não estivermos ao serviço de um outro qualquer. Não nos sentimos “boas pessoas” a não ser que estejamos a FAZER algo por alguém — que não nós próprios. Acreditamos que a única forma de traduzir o nosso amor e a nossa empatia é por acções.

Pronto já a oiço. Já a oiço a perguntar: “Mas calma, e não é? Não passamos o tempo a dizer que um gesto vale mais do que mil palavras? E não é mais virtuoso viver para os outros, do que para o nosso umbigo?” Pois, eu também passo a vida com estes pensamentos (quem será que mos meteu na cabeça?!), mas a verdade é que as opções não são só essas. Se até Jesus disse “Ama o próximo como a ti mesmo”, parece-me seguro deixar de lado a ideia de que amar-nos a nós próprios é pecado. Não temos que nos amar mais a do que aos outros. Não temos que magoar os outros para ficarmos felizes. Mas acho que nos faria bem, a mim, à mãe e a toda a gente, conhecermo-nos melhor, respeitarmo-nos e gostarmos mais de nós próprios. Sentirmo-nos merecedores da compaixão, empatia, não-julgamento, espaço e tempo que tanto queremos oferecer.

Mãe, já imaginou o que seria se a mãe falasse consigo própria da mesma maneira que fala comigo? Se a mãe desse a si mesma os conselhos que me dá a mim, ainda por cima com a enorme vantagem de os poder seguir, em lugar de ter de lidar com a frustração de constatar que não os cumpro? O problema é que acredita genuinamente que é claro que a “Ana tem que descansar e não a julgo por não querer (neste caso) mais um cão... mas EU! Eu sou preguiçosa, egoísta por não adoptar todos os cães do canil.”

Podíamos ficar aqui horas a pensar sobre isto, mas a carta já vai longa, e não posso acabar sem ir ao ponto 5, sim ao dos castigos e recompensas. Sei que estava à espera que lá tivesse ido direitinha!

Sobre cães sinto-me totalmente uma mãe de primeira viagem. Ligo aos meus primos veterinários com mais dúvidas, e mais vezes, do que ao pediatra dos meus filhos. Sei tão pouco que se tiver que responder sobre se são mesmo parecidos com as crianças, nem sequer quero tomar uma posição. Mas aquilo que SEI é o seguinte: os castigos e as recompensas funcionam para modificar a motivação. Por exemplo, alguém prefere ficar deitado no sofá do que vir até mim quando eu a chamo. Mas prefere comer recompensas do que ficar no sofá, por isso quando a chamo com recompensas, vem.

O problema coloca-se — e pelo que vejo com a Amora é igual no mundo canino e humano — quando, por alguma razão, é TÃO difícil, ou tão doloroso, ou tão chato, ou tão bom, ou tão importante fazer “A” em vez de “B”, que não há recompensa ou castigo que valha.

Mas um castigo não pode ser tão assustador ou desconfortável que faça a balança pender para um lado? Com certeza, mas até quando? E como preparamos os nossos filhos, ou os nossos cães, para quando tiverem que tomar decisões sozinhos, sem uma cenoura à frente? Porque não acredito que bastem algumas recompensas ou alguns castigos para que se aprenda de forma permanente — como, aliás, prova o facto de os treinadores de animais fazerem espectáculos com a recompensa na mão. E mesmo que funcionasse (e nunca funciona muito tempo) queremos mesmo andar para sempre atrás dos nossos filhos com recompensas e castigos?

Prefiro acreditar noutra forma de relação, pelo menos com os miúdos... Se descobrirmos porque é que para eles é tão desconfortável, tão chato, ou tão mau corresponder ao que lhes pedimos; se descobrirmos porque é que para nós é tão bom e tão importante que façam o que lhes pedimos, naquele exacto momento, parece-me que podemos encontrar soluções realistas e mutuamente satisfatórias para a maioria dos problemas.

Beijinhos!


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook Instagram.

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