Nós não vos deixamos sozinhos

Isto não acaba em vocês! Porque “nós” não vos vamos deixar morrer. A única forma de nós não lutarmos até ao fim das nossas forças para vos salvar a vida, é se não aparecerem nos hospitais. Mas isso ninguém faz, e ainda bem que não.

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Paulo Pimenta

“Mais um que entrou em burnout.” As histórias vão se acumulando de pessoas que chegaram ao seu limite. Mas isto não é um limite qualquer, e não são pessoas quaisquer. Há muitas pessoas que de uma forma genuinamente apaixonada dedicaram a sua vida a estudar e posteriormente a estudar e trabalhar pela saúde de todos nós. São heróis invisíveis. Humildes, mas extremamente capazes e conhecedores. Discretos e envergonhados, mas valentes. Por vezes aparentam ser frágeis, mas têm uma capacidade de luta e de superação que ninguém imagina. E na maioria dos casos, são os mais dedicados, os mais humanos os que mais lutam que começam a entrar numa espiral de dor e cansaço acumulado que é auto destruidor.

São normalmente os colegas, ou os companheiros que reparam em pequenas coisas, percebendo que este alguém está a caminhar num pântano de areias movediças em que quanto mais lutam, mais se afundam. Toda a gente consegue disfarçar até um certo ponto. Toda a gente sente que pode sempre lutar um bocadinho mais porque há doentes para tratar, e uma equipa para cuidar cheia de fragilidades. Mas aquela pessoa está a perder a alegria de viver, está a perder o autocuidado, e está numa fase que quanto mais luta pelos doentes, mais mal faz a si própria. E ou sai de lágrimas nos olhos do hospital para fugir dos problemas durante uns tempos que podem ser semanas ou meses, ou pode acabar bem pior.

E nós estamos a ver casos uns a seguir aos outros, dos melhores dos melhores, a cair como um baralho de cartas por lutarem não só pelo seu trabalho e pela sua equipa, mas acima de tudo pela sua paixão de salvar vidas. E estão capazes de ir até se destruírem aproximando-se de um ponto sem retorno. Isto é muito duro. Relembro um estudo do Reino Unido que relata que 50% dos profissionais de saúde dos Cuidados Intensivos estão a sofrer de Stress Pós-Traumático, quando os militares em zonas de conflito andam à volta dos 6%, e que 20% dos enfermeiros de Cuidados Intensivos tinham revelado ter ideação suicida. Isto é muito grave e transmite a intensidade do que se está a viver nos hospitais.

Enquanto isso, no mundo dos que falam de tudo e nada sabem, ouvem-se frases de pessoas de todas as idades e todos os níveis de literacia do tipo “temos de continuar a viver, e não tenho medo de morrer” e “também se morre muito de outras coisas”, e por aí fora. Eu compreendo totalmente a génese destes argumentos, mas há algo que as pessoas passados 11 meses ainda não perceberam: Isto não acaba em vocês! Porque “nós” não vos vamos deixar morrer. A única forma de nós não lutarmos até ao fim das nossas forças para vos salvar a vida, é se não aparecerem nos hospitais. Mas isso ninguém faz, e ainda bem que não. Vangloriam-se de “continuar a viver”, mas depois quando realmente precisam vão todos parar aos hospitais. E lá dentro estamos nós, a tentar-vos explicar que este desafio não se resume ao medo de morrer ou à vontade de viver de cada um, resume-se sim à nossa compreensão colectiva para viver em sociedade, porque nós não vos deixamos morrer, mesmo que para isso nos estejamos a autodestruir, porque é disso que somos feitos, e são essas as pessoas que vocês estão a desrespeitar, os melhores dos melhores, os que não trabalham para enriquecer, mas sim porque sentem no salvar vidas uma paixão, e uma obrigação moral que não tem paralelo.

Por vezes colegas, outras vezes maridos ou mulheres têm de olhar nos olhos uma cara exausta que já nem consegue dormir porque os problemas tomaram conta de si há uns meses, para sair fora de jogo durante uns tempos, para que não fique destruído para sempre. E eles ainda lutam, esperneiam e resistem dizendo que podem um bocadinho mais, embora sabendo que estão a cavar um poço sem fundo. Tudo isto porque nós não somos treinados para vos deixar morrer. Formatamos a nossa cabeça para dar tudo por cada um que cruza o nosso caminho.

Estão a destruir os melhores que temos neste país, os que juraram a si próprios que iam lutar até ao fim pela vossa vida e pela vossa saúde.

Isto não acaba em vocês. Se ainda não perceberam isto, é porque não perceberam nada.

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