Scorsese defende que cinéfilos “não podem depender da indústria, tal como existe, para cuidar do cinema”

Num ensaio dedicado a Fellini, publicado na mais recente edição da Harper’s Magazine, o realizador lamenta que a ascensão do streaming tenha reduzido a arte cinematográfica a mero “conteúdo” , em que tudo é reduzido ao seu potencial valor financeiro.

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Martin Scorsese reuniu os seus dois velhos companheiros de percurso, Al Pacino e Robert de Niro, para O Irlandês, estreado em 2019 Reuters/HENRY NICHOLLS

No final de 2019, Martin Scorsese já se manifestara em relação aos filmes que dominam actualmente a produção cinematográfica dos grandes estúdios, os dedicados aos super-heróis da Marvel ou da DC Comics, comparando-os a parques temáticos. Até tentou vê-los para perceber o fenómeno, “mas aquilo não é cinema”, afirmou numa entrevista à Empire. Agora, em “Il Maestro”, ensaio dedicado a Fellini publicado na mais recente edição da Harper’s Magazine, alarga o âmbito da análise. E não se mostra particularmente optimista com o presente. “A arte do cinema está a ser sistematicamente desvalorizada, posta à margem, rebaixada e reduzida ao seu mínimo denominador comum”, escreve. Tal, refere, deve-se ao facto de o mundo do cinema ter sido colonizado pela ideia de que um filme, qualquer filme, é um “conteúdo”, “termo do mundo dos negócios” que faz equivaler todas as imagens em movimento: “Um filme de David Lean, um vídeo de gatos, um anúncio do Super Bowl, uma sequela de super-heróis, um episódio de uma série.”

Num ensaio que começa, muito de acordo com o seu realizador, com parágrafos escritos em forma de guião que nos transportam, numa rápida sequência de imagens, aos cinemas da Nova Iorque em que cresceu e do frenesim que os filmes provocavam — o ano é 1959, e os billboards anunciam obras de Cassavetes, Chabrol, Jean Luc-Godard, Truffaut, Warhol ou Kenneth Anger, além de Fellini, naturalmente —, Martin Scorsese faz notar que a ascensão e actual predomínio das plataformas de streaming têm certamente vantagens. Recorrendo à sua experiência pessoal, reconhece que, sem uma plataforma de streaming como a Netflix, não lhe teria sido possível criar O Irlandês, filme de 2019 em que reuniu os seus velhos companheiros de percurso Al Pacino e Robert de Niro. Contudo, argumenta que a transferência da experiência em sala para o streaming caseiro foi acompanhada da desvalorização da arte cinematográfica como mero “conteúdo”.

Algoritmos

Ao longo dos últimos 15 anos, escreve, o termo começou a ser cada vez mais usado pelos novos dirigentes das empresas de media e cinema, “a maioria dos quais nada sabiam sobre a história da expressão artística, nem a acarinhavam o suficiente para pensar que deviam saber”. Fazer equivaler todo o “conteúdo”, sem distinção, pode “soar democrático, mas não é”, escreve. “Se os visionamentos seguintes são ‘sugeridos’ por algoritmos baseados no que já vimos, e se as sugestões se baseiam apenas no tema ou no género, que impacto tem isso na arte cinematográfica?” Defendendo a curadoria de conteúdos, ou seja, o elemento humano informado — “um acto de generosidade” que nada tem de antidemocrático ou ‘elitista’, termo tão usado actualmente que se tornou insignificante —, e não a praticada, refere, pelo Criterion Channel, MUBI ou a TCM, de que resulta que os “algoritmos sejam, por definição, definidos por cálculos que tratam o espectador como um consumidor e nada mais”.

No momento em que inicia a rodagem de Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI, com Leonardo di Caprio e Robert de Niro como protagonistas (a produção é partilhada pela Paramount Pictures e pela plataforma de streaming Apple TV+), afirma que os cinéfilos “não podem depender da indústria cinematográfica, tal como existe neste momento, para cuidarem do cinema”: “A ênfase é sempre posta na palavra ‘negócio’, e o valor é sempre determinado pela quantidade de dinheiro que pode ser feita de qualquer bem [detido pela indústria].”

No fundo, Scorsese teme as consequências da perda de memória a que uma visão estritamente financeira pode conduzir. E conclui: “Suponho que tenhamos também de redefinir as nossas noções do que é o cinema e do que não é. Federico Fellini é um bom lugar para começar.”

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