A emergência das ilusões e a ilusão das emergências no teatro

O rejuvenescimento de um tecido produtivo e criativo artístico não se pode produzir onde o não há. Menos ainda se em vez de o preservar e ser herança, o mesmo é sistematicamente destruído.

Se percorrermos regulamentos, programas ou projectos da tutela da Cultura nos últimos dez ou doze anos, verificaremos que numa enorme parte deles surge a alusão a valores emergentes ou a emergência pela emergência (de projectos, estruturas, pessoas) como um valor em si. É discutível ontologicamente, mas nem é esse o ponto. Um olhar mais atento e reflexivo far-nos-á compreender que se trata de uma outra emergência: a das ilusões. Muito terá a ver, no plano de um estudo sociológico, sobre o discurso contemporâneo de enaltecimento da juventude num desejo de permanência nela. É a publicidade que a promete, é a cirurgia plástica que a oferece, é mesmo a trafulhice pseudocientífica que a anuncia como se engenharia biónica pudesse mais do que do muito que pode. E embora a busca da eterna juventude, ou juventude eterna, seja de sempre, hoje ela vai ao extremo de transformar a velhice em tabu, tentando driblar a mortalidade.

Estas fantasias ultrapassaram o domínio do racional. Julgo que se pode dizer que se não é, é muito próximo de uma patologia. Mas é também ou aproveita à afirmação ideológica de um neoliberalismo radical, onde o trabalho se transacciona no mercado de chiclete. Com sinais mais evidentes nos estágios gratuitos ou pagos a preço miserável para fazer carreira, na precariedade dos postos de trabalho ou na imensa dificuldade em arranjar trabalho contratado depois dos 45 anos. Os ‘velhos’ hoje são descartáveis e os ‘jovens’ sê-lo-ão amanhã. É óbvio.

Ora, no teatro, o fenómeno reproduz-se na precariedade, na intermitência e nos estágios para o currículo. A suposta valorização da criação artística emergente é um truque de prestidigitação. A DGArtes oferece-se à emergência à boca cheia e serve-a de mão vazia. O palrear ilude os jovens profissionais e os mais distraídos da própria História. Ela é, sobretudo, uma arma de ‘domesticação’. Sociologicamente nem difere muito do recurso à mão-de-obra barata junto da imigração, que se descarta depois com xenofobia para intensificar ainda mais a exploração laboral. Embrulha-se tal ‘prenda’, da emergência, no pressuposto do rejuvenescimento da e na criação artística, como se ela pudesse operar-se pela substituição mecânica e automática do que veio de trás para dar lugar ao que veio de novo.

É uma farsa facilmente desmontável. Porque a inquestionável importância do rejuvenescimento de um tecido produtivo e criativo artístico não se pode produzir onde o não há. Menos ainda se em vez de o preservar e ser herança, o mesmo é sistematicamente destruído, imerso no abandono em nome da emergência. Ignora-se, por malfeitoria ou por idiotia, que o presente é tão-só a ponte que nos leva do passado para o futuro. A expectativa para amanhãs que cantam de novo tipo desaparece mal o criador ou estruturas entram num processo de maturação. 

A própria noção de emergência só tem sentido como uma condição de mutação e transitoriedade. Mas neste caso é mais uma espécie de condução de cordeiros para o abate do rebanho. Esta pastorícia de engano, associada à pulverização de verbas e à política de evento (1) são, em si, partes de um modelo de inviabilidade, inviabilização consciente, de um edifício teatral estruturado e estruturante. A proclamação de tal emergência é um expediente para esses dois outros venenos. Deste modo, estas três coisas (pulverização de verbas e atomização de apoios, preferência por e condicionamento ao evento, a falsidade da emergência como arma de arremesso) têm servido para liquidar as estruturas de passado estável (outrora) e trabalho continuado.

Apenas com uma abordagem e assumpção integral destas e outras questões se tem antídoto (2). Mas isto é pior ainda. Se tal ‘declaração de amor’ pela emergência fosse um erro de interpretação no modo de garantir o rejuvenescimento criativo e produtivo, embora grave e tonto, não era criminoso. Mas é-o, porque se trata de um pretexto para justificar a liquidação do que é, pôde ser, e dificultar o parto de consistência do que possa ser. Criam-se aparentes rupturas, cujos saltos são no nada, onde se precisa da confrontação dialéctica de praxis. Nesta é que se constituiria, mesmo para as estruturas ‘históricas’, um desafio e um combate ao enquistamento de práticas repetitivas, porque, por vezes e não raras, elas nelas (também) existem.

Garantir o rejuvenescimento do tecido produtivo teatral é útil se e quando – e porque – se insere numa lógica de continuidade, transformada e transformadora, inovada e inovadora. Querer fazê-lo a partir desse nada é como varrer do mapa um bairro inteiro para abrir no seu lugar um parque de campismo e chamar-lhe regeneração urbanística. E exigir matriculação recente das autocaravanas para terem acesso a um estacionamento temporário!

Aquilo de que se precisa é mesmo de outra coisa, em direcção a uma efectiva emergência. Plasmá-la num eixo estruturante do tecido produtivo, constituído por unidades de criação e produção sustentáveis e estáveis, onde se contenha, por dever no seu Caderno de Encargos para obter financiamento (3), uma componente para cumprir com o rejuvenescimento artístico. E fazê-lo acompanhar de um espaço próprio para acolhimento (prolongado) de criadores emergentes, devidamente equipado e com toda a logística incorporada, incluindo uma direcção de produção e equipas técnicas e administrativas, elas também articuladas com jovens formados nestas áreas.

À semelhança do que representou, em Espanha, a criação do Centro de Nuevas Tendencias Escenicas, incluído numa ampla reforma, em que surgiu também a atribuição de condição de contratação directa a vários grupos, formando a malha produtiva dos chamados Teatros Estabiles (4). Desta outra forma, seguramente, que a possibilidade dos jovens criadores disporem de melhores condições de produção (e consequentes resultados artísticos mais visíveis das competências de cada um) estariam, aí sim, verdadeiramente emergindo. Como estariam melhores remunerações e condições laborais para eles.

A dispersão de recursos que existe, se reconduzida para esta política, seria altamente rentável, ao contrário da entropia e inércia em que eles mesmos, recursos, ficam, no limbo de um teatro pária. Mas fazer diferente exige pensamento estratégico e programático na vez de parcelas de ideias soltas, sem qualquer substância de fundo no resultado da soma delas. Salvo os resultados de reinar a arbitrariedade de decisões autocráticas, decisões de favoritismos pessoais e de ‘capelinha’.

(1) Estes dois assuntos foram abordados em artigos que aqui se publicaram anteriormente: “Da ineficiência da pulverização de verbas para o teatro” (06.02.2021) e “Malefícios da política de evento no teatro” (09.02.2021).

(2) Eu peço paciência aos leitores que acompanhem os artigos ultimamente publicados e os que o serão brevemente, na repetição de conceitos e citação deles, mas todos e cada um deles inserem-se num conjunto de assuntos que se interligam indissociavelmente; e esta recorrência é um modo de situar um outro leitor que leia algum isoladamente.

(3) Sobre a questão de um Caderno de Encargos, que não existe e devia existir, também se falou noutro artigo: “Criação de massa crítica responsável e liberdade de criação artística” (29/01/2021).

(4) A tradução directa do termo pode ser equívoca. Esta malha em Espanha não corresponde à Rede de Teatros e Cineteatros (de acolhimento) que se promove entre nós, mas à sua inversa. Tratou-se de fixar a residência permanente de unidades de produção (grupos e companhias, de teatro e/ou de dança e, a mais das vezes, pré-existentes) nesses edifícios. Tratou-se de criar condições para a realização de um programa e programação com estabilidade.

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