Volta 2020, estás perdoado

Ainda não foi no quadringentésimo dia de 2020 que interiorizámos que, independentemente dos sucessos individuais de cada país, a saída desta crise só vai chegar quando caminharmos todos na mesma direcção e adquirirmos a humanidade de grupo. Volta 2020, estás perdoado.

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Reuters/HENRY NICHOLLS

O Reino Unido decidiu implementar um confinamento obrigatório a todos os que provenham de países de risco. Portugal inclui-se nesta lista, o que elevou os níveis pessoais de ansiedade da diáspora para números nunca vistos desde os últimos dez minutos da final do Euro 2016. Viver nas Terras de Sua Majestade tornou-se virtualmente indistinguível de estar na Austrália em termos de tempo total de viagem, com desvantagem acrescida no nível mais baixo do poder de compra, esperança de vida e produção de melanina. Quem porventura pensar mentir aos inspectores sobre a sua proveniência arrisca-se a uma pena de dez anos de prisão, o que coloca o crime acima do abuso físico de menores na escala do JNFS (Já Nada Faz Sentido). Bye bye, folar da Páscoa!

Muitos operadores turísticos dizem que ficar duas semanas num quarto a contar ratinhos e gastar uma pipa de massa por uma pensão completa medíocre num hotel mixuruca é uma afronta, mas não se vê grande diferença entre isso e os pacotes de viagens oferecidos na época pré-covid. Chora também a indústria hoteleira britânica que vai ver um decréscimo significativo no número de instagrammers das Maldivas a vir passar férias a Blackpool (de um para zero). Pouco faltará para os monarcas se revezarem no OnlyFans para gerar outras fontes de rendimentos. Ganham os londrinos, que podem finalmente desfrutar da sua cidade sem a interrupção constante de famílias inteiras a olhar para o mapa enquanto bloqueiam o passeio. Talvez seja desta que se atrevem a visitar o museu da cera Madame Tussauds.

Como quase todas as sequelas, este novo ano de pandemia está a ficar bem aquém do original. Não obstante estarmos a viver uma experiência única centenária, devíamos todos dar graças por tal ocorrer com um crescendo de populismo e insegurança económica como pano de fundo. Isto terá certamente um efeito positivo nas notas do exame nacional de história, uma vez que ajudará à contextualização das guerras mundiais. Para melhorar as coisas, somos brindados com um novo tipo de nacionalismo associado ao açambarcamento de vacinas, o “vacionalismo”.

Inspirado por um filme de Hollywood, o Reino Unido aposta tudo numa campanha de vacinação. Damos graças por os ministros britânicos não serem fãs do Mad Max. A ideia é fazer com que a economia ressalte com o mesmo ímpeto com que contraiu, apoiando-se na exportação de variantes mutantes do vírus para tapar o buraco deixado pelo êxodo dos serviços financeiros e a queda em catadupa de vendas. Demonstra-se assim que o isolacionismo pode ser uma boa arma no combate ao vírus, mas trará consequências para o resto da sociedade.

Ao bom estilo pós-divórcio, a Comissão Europeia amuou com o sucesso da inoculação britânica e considerou fechar as fronteiras para prevenir a travessia de vacinas pelo Canal da Mancha. Ficámos assim a saber que afinal sempre se podia tomar o mesmo tipo de iniciativa para prevenir a morte desnecessária de seres humanos em desespero. A DGS fez double down e reagiu queixando-se da ineficiência da vacina AstraZeneca na imunização a maiores de 65 anos, levando a comunidade de físicos quânticos a estudar esta vacina de Schrödinger, que simultaneamente não nos serve para muito mas que nos mete inveja que outros usem.

Ainda não foi no quadringentésimo dia de 2020 que interiorizámos que, independentemente dos sucessos individuais de cada país, a saída desta crise só vai chegar quando caminharmos todos na mesma direcção e adquirirmos a humanidade de grupo. Volta 2020, estás perdoado.

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