Uma moratória em prol da democracia local

Se estas novas limitações já eram difíceis em tempos normais, em contexto pandémico vão pôr em causa a competitividade do processo eleitoral e criar uma lógica de democracia local em circuito fechado, que afastará ainda mais os cidadãos da política.

As últimas alterações à legislação eleitoral autárquica vão trazer, já nas eleições deste ano, grandes limitações aos direitos de candidatura dos pequenos partidos e dos grupos de cidadãos eleitores (GCE). Por um lado, passa a impedir-se que um candidato concorra em simultâneo à câmara e à assembleia municipal. Na prática, isto significa que, em muitos municípios, os pequenos partidos e GCE dificilmente vão conseguir concorrer a ambos os órgãos municipais.

Surgida de uma proposta na especialidade, esta alteração viola o Regimento da Assembleia da República, uma vez que não foi objecto de consulta à ANMP e à Anafre, e, ao pôr seriamente em causa a liberdade de decisão das forças políticas quanto à propositura ou não de candidaturas, apresenta-se como uma alteração de duvidosa constitucionalidade por violação, entre outros, do direito de participação na vida pública e do princípio da igualdade de oportunidades. Além disso, esta restrição era desnecessária, uma vez que actualmente já se impede, sob a forma de incompatibilidade, a ocupação em simultâneo de cargos em ambos os órgãos municipais.

Por outro lado, aumentam-se, de forma excessiva, as exigências aos GCE relativamente às listas de proponentes e às denominações, o que lhes trará ainda mais dificuldades, já que com estas novas regras dificilmente conseguirão apresentar candidatura a todos os órgãos municipais e de freguesia identificados no mesmo grupo de cidadãos. Mais um caso de constitucionalidade duvidosa, desde logo porque, conforme tem afirmado o Tribunal Constitucional, se é verdade que os partidos políticos são à luz da CRP uma “peça fundamental do sistema político” e isso autoriza o legislador a poder beneficiá-los em face do GCE, não menos verdade é que essas eventuais discriminações não poderão ser material e racionalmente infundadas – lógica que aqui não é cumprida.

Se estas novas limitações já eram difíceis em tempos normais, em contexto pandémico vão pôr em causa a competitividade do processo eleitoral e criar uma lógica de democracia local em circuito fechado, que afastará ainda mais os cidadãos da política. Independentemente de uma eventual fiscalização abstracta da constitucionalidade e do mais que necessário adiamento das eleições (como sucedeu em França), é urgente que se abra, o quanto antes, a discussão pública sobre uma moratória a estas alterações à legislação eleitoral, que garanta o adiamento para depois das próximas eleições autárquicas da aplicação destas novas limitações de duvidosa constitucionalidade. Este é o único caminho possível se realmente se quer que a tão propalada máxima de que a pandemia não suspende a democracia seja mais que um slogan.

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