Karim Khan: um Relações Públicas para o Tribunal Penal Internacional?

Os próximos meses permitirão saber se o novo procurador-geral do TPI poderá alinhar com Estados que apostaram fortemente no candidato que acreditam ser mais favorável aos seus interesses.

O Tribunal Penal Internacional (TPI) tem um novo procurador-geral: o britânico Karim Khan.

Karim Khan é um jurista cuja experiência não deixa sombra para dúvidas quanto ao mérito que tem para suceder no cargo à gambiana Fatou Bensouda: além de ter sido nomeado por António Guterres para liderar a equipa de investigação aos crimes de guerra cometidos pelo Daesh no Iraque, foi advogado de acusação nos tribunais penais internacionais para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda, conselheiro das vítimas nas Secções Extraordinárias dos Tribunais do Camboja e esteve ainda como conselheiro no Painel Especial da ONU para Crimes Graves cometidos em Timor-Leste, no Tribunal Especial para a Serra Leoa, para o Líbano e para o Kosovo. Em suma, um currículo recheadíssimo em matéria de justiça internacional.

O seu principal adversário nesta corrida, o irlandês Fergal Gaynor, conta um mais de 23 anos de experiência e a sua experiência fala por si. A grande diferença entre ambos, todavia, é que a intervenção de Karim Khan na última década passou a focar-se na representação de arguidos junto do TPI, enquanto Fergal Gaynor tem toda a sua experiência consolidada em cargos com natureza investigatória ou acusatória.

É importante recordar que ambos foram sujeitos a votação em cumprimento do princípio de rotatividade de procuradores em função da área geográfica. O primeiro procurador-geral era sul-americano (Luís Moreno-Ocampo), a segunda era africana (Fatou Bensouda). Esta era a altura de escolher um procurador-geral europeu.

Karim Khan, todavia, não começou por ser uma escolha natural. É importante recordar que Khan foi uma aposta insistente do Quénia após ter representado e garantido a absolvição de William Ruto, vice-presidente deste país, no TPI. Após a violência pós-eleitoral de 2007, o TPI abriu uma investigação aos acontecimentos no Quénia e incluiu William Ruto e Uhuru Kenyatta, actual chefe de Estado, no processo, sendo suspeitos de crimes contra a humanidade. Num quadro político fortemente marcado pelas rivalidades étnicas, Ruto e Kenyatta eram rivais e acusados de promover a violência dos seus respectivos grupos étnicos contra elementos do outro. Quando o TPI comunicou que os dois eram suspeitos, formaram uma coligação destinada a contrariar a acção do TPI e venceram as eleições de 2013, não largando mais o poder até ao presente.

Esta coligação teve efeitos imediatos: além de ascenderem ao poder e conseguirem gerir a abordagem do Quénia ao TPI em função dos acontecimentos que se desenvolvessem, um conjunto de diligências junto dos Estados-Partes no Estatuto de Roma garantiu a alteração das regras de processo de modo a garantir que não tivessem que se deslocar até Haia e, simultaneamente, não fossem surpreendidos por mandados de detenção internacional. Depois, uma testemunha-chave foi assassinada em 2014. Finalmente, a defesa de Karim Khan fez o resto: as acusações contra ambos foram arquivadas.

A forma como Karim Khan foi proposto pelo Quénia tem sido interpretada como uma recompensa pelos serviços prestados aos principais dirigentes do país. Ao mesmo tempo, Estados-Partes como Maurícias e Espanha têm questionado a sua legitimidade para ser uma solução, já que Karim Khan foi imediatamente patrocinado pelo Reino Unido, um Estado que ainda recentemente declarou não ter de respeitar a decisão do Tribunal Internacional de Justiça relativamente à disputa pela soberania sobre o arquipélago de Chagos.

A isto importa ainda juntar o facto de Karim Khan ser conselheiro da Rainha Isabel II, o que agrava as suspeitas sobre um possível conflito de interesses entre um procurador que tem representado os interesses de um Estado em concreto ao mesmo tempo que tem aproveitado, nos últimos anos, as fragilidades e lacunas processuais no TPI para favorecer interesses próprios. Isto tudo num contexto em que será chamado a pronunciar-se brevemente sobre a investigação a alegados crimes cometidos pelo Reino Unido no Iraque.

Um último ponto que adensa as dúvidas sobre Karim Khan prende-se com o facto de outros dois Estados, em especial, terem desencadeado diligências junto de Estados-Partes no Estatuto de Roma no sentido de assegurarem que Khan era eleito: falo dos EUA e de Israel. Ambos têm em comum três aspectos: não são Partes no Estatuto de Roma, não querem qualquer envolvimento com o TPI e estão a ser investigados por alegados crimes cometidos no Afeganistão e na Palestina. Estes são outros dois processos sobre os quais o novo procurador-geral terá de tomar uma decisão no curto prazo.

O papel de Israel nas diligências em favor da eleição de Karim Khan foi tornado público pela comunicação social local e surgiu dias após o TPI se ter pronunciado definitivamente favorável ao reconhecimento da jurisdição do tribunal sobre a Palestina, admitindo-a enquanto Estado e com uma área territorial definida. Portanto, em teoria, altos responsáveis políticos e militares israelitas podem estar mais próximos de enfrentar a justiça internacional por actos conduzidos no que o TPI entende ser solo palestiniano.

Neste estado das coisas, os próximos meses permitirão saber se Karim Khan poderá alinhar com Estados que apostaram fortemente no candidato que acreditam ser mais provável que defenda os seus interesses – embora tamanha convicção tenha um valor relativo por inexistir qualquer elemento concreto que possa apontar nesse sentido, além das suspeitas formadas com base no comportamento dos Estados.

Não obstante, um outro elemento que reforça as suspeitas sobre Karim Khan prende-se com o facto de o costume dos Estados-Partes na escolha dos procuradores-gerais do TPI ter recaído, nos processos anteriores, em personalidades cujos Estados ofereçam garantias de estabilidade social e neutralidade política, o que pesou na escolha de um argentino e de uma gambiana. Neste caso concreto, parece evidente que o Reino Unido é parte interessada num processo e a natureza tendencialmente ofensiva de Londres nas relações internacionais, com participação sistemática em locais de conflito, constituem um forte obstáculo à eleição do novo procurador-geral.

No final, Karim Khan tem duas funções: reparar as relações entre o TPI e as potências visadas pela investigação do tribunal e recuperar a credibilidade da instituição em matéria acusatória, que durante o mandato de Fatou Bensouda saiu afectada por inúmeras absolvições provocadas por investigação deficiente e falta de provas contra os acusados, alguns dos quais acabaram absolvidos e libertados após vários anos de prisão preventiva.

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