Contact tracing ou brincar às plataformas?

Estamos confortáveis com o facto de, em janeiro de 2021, quase um ano depois do início da pandemia, Portugal ter um sistema de contact tracing tão ineficiente e que só se aguenta com a dedicação extrema de um número claramente insuficiente de profissionais?

“Estou sim? Estou a ligar da parte da autoridade de saúde, para fazer o seu rastreio de contactos.” Aqueles que já estiveram infetados com covid-19 provavelmente lembram-se de receber uma chamada deste tipo, se tiverem tido sorte. Corresponde a um aspeto pouco falado, mas muito importante do combate à pandemia: a realização de inquéritos epidemiológicos e rastreio de contactos, vulgo contact tracing. Mas está tudo a correr bem dentro das estruturas que fazem este trabalho? Suspeito que o leitor já desconfia da resposta.

Terminei o curso de Medicina o ano passado, o que significa que, em janeiro deste ano, no pico da pandemia, iniciei o meu percurso profissional no SNS. Decidi começá-lo com o meu estágio de um mês em Saúde Pública, esperando poder dar um contributo e, ao mesmo tempo, aprender com a experiência de combater a pandemia numa das suas alturas mais críticas. Coube-me integrar uma das equipas de contact tracing, onde estava responsável por ligar a doentes covid-19, perceber com quem haviam contactado (ou seja, a quem poderiam ter passado o vírus) e decretar o isolamento profilático desses contactos.

Vou tentar dar uma representação da minha frustração ao lidar com este sistema e daquelas que são, a meu ver, falhas importantes que limitam a nossa capacidade de saber por onde anda o vírus.

Desde logo, há quatro ferramentas informáticas com as quais estamos a trabalhar: a plataforma TraceCOVID-19, onde temos acesso a como o doente se tem sentido ao longo do tempo; o SINAVE, que serve para os médicos reportarem a doença a instituições como a DGS; as bases de dados internas de cada autoridade de saúde, que utilizamos para saber que doentes contactar; e os formulários que preenchemos no âmbito do contact tracing propriamente dito, onde registamos informações do doente e dos seus contactos.

Se o leitor acha esta quantidade de ferramentas confusa, não está sozinho, mas regressaremos a este tópico.

Primeiro, vejamos o meu percurso quando me chega um caso confirmado: começo por aceder à base de dados da autoridade de saúde e verifico, manualmente, que ainda não foi contactado por nenhum dos meus colegas. Depois, acedo à plataforma TraceCOVID-19 e passo a copiar para o formulário do inquérito epidemiológico dados como o nome completo, número de utente, data do teste positivo... Informações que já existiam todas na base de dados do lado, mas que eu sou obrigado a transcrever. Só depois ligo ao doente, recolho as informações que não estavam já disponíveis e faço o rastreio dos seus contactos: pergunto onde andou, com quem vive, com quem trabalha, para determinar quem precisa de se isolar. Para cada um destes contactos, volto a ser obrigado a recolher um sem-número de dados pessoais antes de passar à parte que interessa: “Vai ter de ficar em casa até ao dia X, estes são os sinais de alarme, se se sentir pior contacte a linha SNS24 ou o médico de família” –​ quando finalmente chego a esta frase, passaram-se 45 minutos ou mais em que uma boa parte do meu tempo foi gasta em trabalho administrativo que, ou não é necessário, ou já devia estar automatizado. Depois disso, tenho ainda de voltar atrás e dar conta a todas as outras plataformas do facto de já ter concluído o inquérito desse doente. No fundo, fazemos pingue-pongue com plataformas todo o dia.

O facto de estas ferramentas não interagirem (ou, enfim, de não existir uma plataforma comum que consiga englobar tudo o que precisamos) causa um gigantesco subaproveitamento do tempo das pessoas que desempenham esta função. Isto certamente contribuiu para o colapso da rede de contact tracing em janeiro, altura em que lentidão do sistema e a falta de profissionais simplesmente paralisaram a nossa capacidade de acompanhar a transmissão do vírus.

Recentemente saiu uma norma da DGS muito publicitada que, além de expandir a realização de testes, refere ainda que "os procedimentos de inquérito epidemiológico e o rastreio de contactos devem ser iniciados nas 24 horas seguintes ao conhecimento da existência do caso". Ora, seria excelente poder cumprir esta exigência, mas, pelo menos no mês de janeiro, ela era completamente inatingível da nossa parte. Nesse período de crescimento explosivo de novos casos, encontrávamo-nos a realizar inquéritos por vezes com dez dias de atraso (frequentemente os doentes já estavam curados!), devido à falta de meios e aos referidos pingue-pongues. Dez dias é o suficiente para o vírus correr o mundo. Apesar dos nossos melhores esforços e da excelente coordenação que tínhamos da parte da autoridade de saúde, era simplesmente impossível dar conta da avalanche diária de casos. Por mais boa vontade que exista por parte dos profissionais, esta pandemia só se combate com armas próprias, e não há arma mais importante do que a informação.

Bem sei que estamos em permanente atualização e que alguns dos problemas que aponto podem mesmo já ter sido ultrapassados desde o mês passado, mas fica a questão: estamos confortáveis com o facto de, em janeiro de 2021, quase um ano depois do início da pandemia, Portugal ter um sistema de contact tracing tão ineficiente e que só se aguenta com a dedicação extrema de um número claramente insuficiente de profissionais?

Neste momento estamos em confinamento geral e o número de casos naturalmente baixou muito, o que faz com que os sistemas não estejam tão pressionados, mas é ingénuo pensar que o eventual desconfinamento não vai levar a um aumento de casos. Quando isso acontecer, o simples facto de conseguirmos saber onde anda o vírus pode ser a diferença entre um aumento moderado e uma nova explosão de casos.

Quando desconfinamento voltar a ser a palavra de ordem, vamos ter aprendido alguma coisa? Vamos continuar a ter profissionais de saúde a passar os dias a copiar números de utente de uma plataforma para a outra? Ou vamos ter sistemas que lhes permitem fazer o seu trabalho? A altura para pensar estas questões não é quando tivermos outra calamidade, como demasiadas vezes já fizemos ao longo desta pandemia. É agora.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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