Ensino acrítico e a democracia em Portugal

Relembrando que as elevadas taxas de abstenção, é sensato culpar algo ou alguém. E aqui não tenho dúvidas: o grande culpado é o sistema de ensino e a forma como este fomenta a alienação dos alunos e, também, dos professores.

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Decerto que todos conhecemos alguém – se não um largo número de pessoas – que partilha da opinião de que “a política não lhe interessa” ou de que “os políticos são todos corruptos”. Pergunto-me frequentemente como chegámos até aqui, quando ainda nem 47 anos passaram desde que o povo derrubou uma ditadura que durou quase 48 anos e condenou milhares de homens e mulheres à miséria e à opressão.

Então, a partir daqui, pergunto-me também: se hoje, tempo em que a memória de Abril ainda está tão vincada, seja por aqueles que ainda cá estão e que viveram antes de 74 e partilham as suas memórias e tempos de luta, seja pelas gerações mais novas, que têm consciência do que a Revolução nos trouxe, é já esta a mentalidade de um grande número de pessoas, especialmente jovens, então como será no amanhã?

Relembrando que as taxas de abstenção se fixaram nos 51,4% nas eleições legislativas de 2019, nos 69,3% nas eleições europeias do mesmo ano, nos 60,8% nas eleições presidenciais do mês passado e que, salvos raros picos, esta taxa tem vindo a revelar-se cada vez maior eleição após eleição, é sensato culpar algo ou alguém. E aqui não tenho dúvidas: o grande culpado é o sistema de ensino e a forma como este fomenta a alienação dos alunos e, também, dos professores.

Hoje, ao olhar para trás, consigo avaliar o papel que a escola teve na minha formação cívica e, indissociavelmente política, em contraste com o papel que o seio familiar me proporcionou neste aspecto. Estando certa de que não incorro em nenhuma injustiça, posso afirmar que no que toca a este ponto o contributo da escola foi diminuto, para não dizer nulo e, decerto, muitos haverá que partilhem desta mesma opinião. Desde logo há uma separação, quase sistémica, entre aqueles que são considerados mais inteligentes (os das matemáticas, claro) e os que são considerados menos inteligentes (os dos ramos mais humanísticos, evidentemente). Este é um erro crasso e com grande culpa no cartório.

Como estudante e ex-frequentadora do ensino secundário, falo por experiência própria. Assisti durante grande parte do meu percurso educativo, talvez não mais porque nalguns momentos ainda não tinha capacidade interpretativa, a uma clara descredibilização das humanidades e diminuição da sua importância enquanto área fulcral para a formação, a todos os níveis, das crianças e jovens. Atrevo-me a dizer que devem ser poucos aqueles que nunca sentiram que um Excelente a Matemática era considerado superior a um Excelente a História ou a Português. E aqui está um segundo grande erro. Primeiramente, não se pode avaliar quantitativamente uma disciplina subjectiva, como o Português, a Literatura, ou até mesmo a História. A não ser que a transformem, à força, e contra a natureza dos conteúdos que esta abrange, numa disciplina objectiva, ditada por critérios de correcção estritos, que enterram qualquer tipo de interpretação mais original, mas não por isso menos valorosa.

Um dos maiores perigos que a boa escola tecnocrática acarreta é, talvez, o desconhecimento da História, quando é esta que nos permite, enquanto indivíduos e sociedade, conhecer o que aconteceu no passado, de onde viemos, o que conquistámos e em que circunstâncias, que erros se cometeram e como evitar que se repitam. Afinal, “um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”.

A forma como são orientadas as aulas e como são apresentados os conteúdos nos manuais da disciplina não transmite o verdadeiro impacto e significado da maioria dos acontecimentos. Mais uma vez, o discurso acrítico impera, os conteúdos estão dispersos aqui e ali, as doutrinas e as ideologias apagam-se. Romantizam-se acontecimentos, “perpetua-se o mito do bom colonizador”, pouco se fala da realidade da ditadura do Estado Novo, da miséria, dos presos políticos, da emigração, dos direitos das mulheres ou da Revolta Estudantil de 69.

De mãos dadas com a marginalização da disciplina de História, principalmente no ensino preparatório, o jogo do “tira e põe”, do formula e reformula da disciplina de cidadania não tem sido, nunca, uma boa aposta. Primeiro, implementar a disciplina nuns anos, noutros não, às vezes com mais carga horária, outras vezes com menos, só faz com que a comunidade escolar não lhe dê valor e não veja a sua importância. Mas sejamos honestos. Nos moldes em que tem sido posta em prática é natural, e até sensato, que não se lhe dê importância: se não pedimos a um professor de Inglês para leccionar Biologia, porque colocamos um director de turma, de uma qualquer área, sem formação específica em áreas como política, direito, educação sexual, ambientalismo, entre outras, a dar uma disciplina de formação cívica?

A partir daqui a conclusão é simples. A política não lhes interessa, os políticos são todos corruptos, não votam porque não importa, não pensam sobre o assunto porque não valorizam e, consequentemente, aplaudem populismos e ideais antidemocráticos – muitos deles, espero, sem se aperceberem – porque a escola não cumpriu, a meu ver, o seu principal papel e não lhes ensinou o contrário nem a importância do contrário. O acriticismo e a inércia alimentam a iliteracia política e a ascensão de movimentos fascistas, com os quais nos deparamos cada vez mais. O quadro actual não está para facilitismos: é imperativo que a escola nos ensine a pensar, a questionar e, assim, a lutar pela democracia e pelos valores de Abril.

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