Refletir o tempo em tempos de pandemia em Portugal

A variável “tempo” da tomada de decisão politica, complexa, reconheça-se, levou à perda de vidas e seguramente a um muito maior atraso na recuperação da economia.

Caros leitores e cidadãos,

A situação da pandemia em Portugal e o que tem sido dito, por diversas vezes, tem-me desafiado a escrever ou falar para os meios de comunicação social.

Com efeito, e declarando desde já o conflito de interesses, sou professora do ensino superior na área da saúde e tenho muitos familiares ligados à saúde, nomeadamente enfermeiros, médicos, higienistas orais, farmacêuticos a trabalhar maioritariamente no setor público, mas também no setor privado. Ou seja, no Serviço Nacional de Saúde e no Sistema de Saúde em geral, onde se incluem todos os recursos em saúde no nosso país.

Portugal passou no mês de janeiro pela pior crise de saúde pública dos últimos 100 anos, segundo referiu o investigador Carmo Ferreira. Todos os dias víamos os números a crescer as infeções, os mortos, os internamentos e os internamentos em medicina intensiva em crescimento exponencial.

Vimos o esforço dos profissionais, que todos os dias eram confrontados com mais e mais doentes, num fluxo jamais visto no nosso país, a dar o melhor de si e a exercer uma medicina e enfermagem de catástrofe altamente competente para salvar vidas!

E muitas foram salvas, mas infelizmente muitas outras se perderam!

Neste mês de janeiro percebemos quão resilientes são os profissionais de saúde, quão elástico tem sido o sistema que foi combatendo, gerindo com muitas dificuldades e até a desorganização, a enorme procura, tendo ido muito além do esperado nos planos de contingência. Esta gestão, verdade se diga, também foi conseguida à custa da redução ou mesmo paragem da atividade programada. Mas não só, isso não seria suficiente!

Esta elasticidade resulta também de um trabalho contínuo; reconfigurando e fundindo serviços, redesenhando fluxos de trabalho, reorganizando equipas, captando e resgatando saberes e competências, muitas vezes entre pares, ali mesmo ao lado, à distancia de um telefonema! À distancia ou proximidade da ajuda, e da solidariedade de muitos para que todos pudessem dar o seu melhor.

E isso não foi uma vez por semana! Não foi uma vez por dia! Mas sim muitas e muitas vezes ao dia, e também de noite, incansavelmente pela madrugada fora.

Vimos os grandes centros hospitalares de Lisboa a receber doentes do Norte quando foi necessário acudir ao Norte, e vimos o contrário quando Lisboa necessitou de ajuda e está ainda a necessitar, a receberem doentes de Lisboa, o Norte, o Centro e outras as regiões do país, a ajudar numa tentativa para equilibrar e a pressão sobre os hospitais, o que permitiu salvar ainda mais vidas. Vimos o setor privado a receber doentes covid e não covid, a Madeira, e também em outros momentos o continente a receber doentes das regiões autónomas.

Sim! O País e o setor da saúde em Portugal respondeu e foi além do que jamais se pensou ser possível. Não fora haver um Serviço Nacional de Saúde, cuja resposta primeira de profissionais altamente qualificados nos serviu a todos, e que se constituiu como a nossa grande linha de defesa, os danos teriam sido incontornavelmente maiores.

Mas, então, o que falhou? Os planos de contingência não previram o que deviam ter previsto? Estavam mal feitos? Os técnicos tinham errado nos cálculos? Não seguiram a melhor evidência?

A comunicação ao país é errada? O país, os cidadãos, estão mal informados? Os jovens, com acesso quase universal às redes sociais, não sabem o que se passa?

Não! Nada disso! Todos os que queremos já sabemos o que podemos fazer e como podemos contribuir!

Sim, todos sabemos! E todos somos responsáveis pelo sucesso ou insucesso e pelos resultados do país, na medida em que cada um cumpra ou não o seu dever de cidadão: seja profissional, político, técnico ou mesmo cientista.

Os planos de contingência, os profissionais, os peritos e cientistas, muitos reconhecidos internacionalmente, não falharam, os técnicos e a decisão técnica não falharam! Respeitaram ao limite a melhor evidência, apenas e tão simplesmente não podiam ter previsto aquilo que não tinham ao seu alcance, no menu de ferramentas. 

Tinham-se esquecido de adicionar a variável “tempo” na sua equação!

De que tempo falamos? Do tempo frio? Poderia ser!

Num janeiro dos mais frios dos últimos 20 anos, em que o cidadão não se pode aquecer sem deixar de comer uma refeição ao dia, ou sem deixar de comprar todos os medicamentos que necessita da farmácia. Também poderia estar a falar desse “tempo”, que muitas infeções respiratórias covid e não covid​ terá provocado.

Não! Refiro-me antes ao “tempo” da decisão política, que estava tão alinhada na primeira vaga e que se perdeu no seu “tempo” nas vagas subsequentes! 

A variável “tempo” da tomada de decisão politica, complexa, reconheça-se, levou à perda de vidas e seguramente a um muito maior atraso na recuperação da economia. As escolhas do natal e o atraso na decisão, o adiar a decisão de fechar o país e as escolas, quando todos os peritos já diziam ser demasiado tarde, saiu, porventura, mais caro ao país em ambas as vertentes, a da saúde e a da economia, do que um confinamento mais precoce, mais curto e mais certeiro. A este inexplicável adiamento da decisão política acresce ainda o tempo perdido na dicotomia entre a decisão e a execução.

Vamos fechar para a semana que hoje já não temos “tempo”!

Quanto mais profunda for a crise pandémica e de saúde pública, mais tempo teremos que estar confinados, já que esta é única arma eficaz neste momento em que as vacinas tardam em chegar, e onde a variável “tempo,” nesta equação, também correu contra nós.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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