Os maus bocados

Nos maus bocados até os amigos sacanas têm uma palavra a dizer. Até aqueles com quem tivemos discussões acesas se predispõem à empatia momentânea. Da mesma forma que os mais altivos, distantes e frios abrem espaço ao abraço comum. Num mau momento, somos todos iguais.

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Levamos a amizade a sério. E é assim que devemos vivê-la: comprometidos. E por isso, os maus bocados dos nossos amigos são também um pouco nossos. É impossível, para os grandes amigos, que as dificuldades de cada um passem ao lado como distracções abstractas. Sentimos sempre um pouco da dor dos nossos amigos

Não devemos carregar pesos que não são nossos, mas nunca nos vamos conseguir dissociar de modo completo de um problema de alguém de quem gostamos. Não nos consome, mas incomoda-nos. É como uma pequeníssima pedra que se infiltrou nas meias. Conseguimos caminhar sem qualquer problema, mas há algo de desconfortável que não permite a serenidade completa. Se dedicamos tempo às relações amorosas, amigáveis e familiares, é inevitável a empatia e a fervorosa tentativa de descoberta de soluções. 

Em todos os meus maus bocados tive a sorte de poder contar com muita gente. Da mesma forma que essa muita gente se afastou a meu pedido, porque às vezes não passa por estar rodeado de pessoas mas exactamente pelo contrário. 

Nos maus bocados até os amigos sacanas têm uma palavra a dizer. Até aqueles com quem tivemos discussões acesas se predispõem à empatia momentânea. Da mesma forma que os mais altivos, distantes e frios abrem espaço ao abraço comum. Num mau momento, somos todos iguais. 

Da mesma forma que os amigos estão lá para levantar um corpo caído, também lá estão para levantar um copo. O corpo é mais pesado que o copo, logo levantar um corpo dirá muito mais de quem o levanta do que de quem levanta o copo. 

“É nos momentos difíceis...”, diz a vida. E tem razão. É fácil fazer o caminho com a estrada visível e as bermas estáveis num dia bonito de céu aberto. Mas caminhar em nevoeiro nos momentos que precedem a derrocada é do mais exigente que a vida nos pede. Os maus bocados moldam-nos o carácter. 

Noites mal dormidas, inquietação, respostas secas e rápidas a terceiros, olhares cismados no vazio, distracções e impaciência. Estes são os sintomas dos maus bocados. Na essência da amizade também somos um. Porque maus bocados todos temos, passageiros e impermanentes. O que nos une ao outro é a vontade. A vertiginosa vontade de ver o outro bem sem expectativas. A pureza e a decência de uma boa amizade vê-se quando os sintomas de um mau bocado se aplicam a quem pede ajuda, da mesma forma que se aplicam a quem está lá para levantar o corpo. ​

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