Etiópia: é fácil imaginar quando as pessoas não conseguem chegar aos hospitais

Estou impressionado com o quão difícil tem sido – e continua a ser – chegar a uma população tão necessitada numa área tão densamente povoada. Tendo em conta os meios e a capacidade de análise que organizações internacionais e as Nações Unidas possuem, o facto de tudo isto estar a acontecer é um fracasso do mundo humanitário.

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Matt Hotchkiss/MSF

Ao fim de várias tentativas, conseguimos entrar da capital de Tigré, Mekele, com uma primeira equipa da Médicos Sem Fronteiras (MSF) a 16 de Dezembro, mais de um mês depois de a violência ter eclodido. A cidade estava calma. Havia electricidade, mas não o fornecimento de bens essenciais. O hospital funcionava a 30 ou 40% da capacidade, com muito poucos medicamentos. E, mais importante, quase não havia pacientes, o que é sempre um mau sinal. 

Fizemos uma avaliação do hospital, com a ideia de poder encaminhar para ali, tão depressa quanto possível, pacientes de Adigrat, a 120 quilómetros para Norte. 

Ao chegarmos três dias depois a Adigrat, a segunda cidade mais populosa de Tigré, constatámos que a situação era muito tensa e que o hospital se encontrava em condições terríveis. A maioria dos profissionais de saúde tinha partido, praticamente não havia medicamentos e não havia comida, nem água, nem dinheiro. Alguns pacientes admitidos com ferimentos traumáticos encontravam-se desnutridos. 

Fornecemos medicamentos ao hospital e comprámos alimentos nos mercados que estavam abertos. Com os trabalhadores do hospital que ainda permaneciam, limpámos o edifício e organizámos a recolha de lixo. Aos poucos, reabilitámos o hospital para funcionar como outro centro para a transferência de pacientes. 

Entrámos a 27 de Dezembro em Adwa e Axum, duas cidades a Oeste de Adrigat, na região central de Tigré. Encontrámos um cenário similar: não havia electricidade nem água. Todos os medicamentos do hospital geral de Adwa tinham sido roubados e os equipamentos e mobiliário destruídos. Felizmente, a instituição Don Bosco, em Adwa, tinha convertido a sua clínica em hospital de emergência com uma pequena sala de operações. Em Axum, o hospital universitário, com 200 camas, não fora atacado, mas estava a funcionar a apenas 10% da capacidade. 

Por estradas onde a segurança permanecia incerta, fizemos seguir camiões com alimentos, medicamentos e oxigénio medicinal rumo a estes hospitais e começámos a providenciar apoio aos departamentos médicos mais essenciais, como salas de cirurgia, unidades de maternidade e serviços de urgências, e também a proceder à transferência dos casos críticos. 

Centros de saúde pilhados e sem funcionar 

Para além dos hospitais, cerca de 80 a 90% dos centros de saúde entre Mekele e Axum não estavam a funcionar, por falta de pessoal ou porque tinham sido roubados. E quando os serviços de cuidados primários não existem, as pessoas não conseguem aceder ou ser transferidas para os hospitais. 

Antes de esta crise eclodir, eram feitas duas cirurgias para apendicite por dia no hospital de Adigrat. Mas nos últimos dois meses não foi realizada nem uma. Em todos os locais vimos pacientes a chegarem tarde demais. Uma mulher estava em trabalho de parto há sete dias – a sua vida foi salva porque conseguimos transportá-la até Mekele. Vi pessoas chegarem ao hospital em bicicletas carregando um paciente desde povoações a 30 quilómetros de distância. E estas eram as que conseguiam chegar a um hospital... 

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Matt Hotchkiss/MSF

Se mulheres com complicações no parto, pacientes gravemente doentes e pessoas com apendicite ou ferimentos traumáticos não conseguem chegar a um hospital, é fácil imaginar as consequências. Há uma população imensa em sofrimento, seguramente com repercussões fatais. O hospital de Adigrat abrange uma área com mais de um milhão de pessoas e o de Axum tem mais de três milhões. Se estes hospitais não funcionam adequadamente e não é possível chegar a eles, as pessoas vão morrer em casa. E quando o sistema de saúde se desmorona, vacinações, detecção de doenças e programas nutricionais também não funcionam. Não foram feitas quaisquer vacinações em quase três meses, o que faz temer que surjam epidemias em breve. 

Nas semanas recentes, as nossas equipas médicas móveis começaram a visitar áreas fora das principais cidades e estamos a reabrir alguns centros de saúde. A nossa presença traz um certo sentimento de protecção. Temos visto alguns profissionais de saúde regressar ao trabalho. Apenas cinco pessoas estiveram presentes na primeira reunião que organizámos no hospital de Adwa, mas na segunda já foram 15 e mais de 40 participaram na terceira. Para além das actividades médicas, sentimos que damos às pessoas alguma esperança: o sentimento de que as coisas podem melhorar ao fim de dois meses sem boas notícias. 

Medo, filas e falta de serviços essenciais 

Nesta zona de Tigré não há grandes acampamentos de pessoas deslocadas – a maioria abrigou-se nas casas de familiares ou de amigos, pelo que muitas residências têm agora 20 ou 25 pessoas a viverem juntas. O impacto da violência é visível nos edifícios e nos carros com buracos de balas. Especialmente no início, vimos a população fechar-se em casa e viver imersa num medo enorme. Todas as pessoas nos davam pedaços de papel com números de telefone escritos e pediam-nos que transmitíssemos mensagens às famílias. Não sabem sequer se os familiares e entes queridos estão bem porque, em muitos locais, ainda não há telefones nem telecomunicações. 

Quando chegámos a Adigrat, vimos filas de 500 pessoas junto a um camião de água, à espera de conseguirem 20 litros de água por família no máximo. As linhas telefónicas foram restabelecidas em Adigrat há apenas alguns dias. A situação está a melhorar pouco a pouco, mas conforme nos deslocámos para Oeste encontrámos um mesmo cenário noutros lugares: ainda menos serviços e menos transportes. 

Estamos muito apreensivos sobre o que pode estar a acontecer nas áreas rurais. Ainda não conseguimos ir a muitos locais, porque os acessos permanecem difíceis, seja devido à insegurança ou porque é complicado obter autorização. Mas sabemos – pelos testemunhos de anciões das comunidades e de autoridades tradicionais – que a situação nesses locais é muito má. 

Vastas áreas de Tigré têm um terreno muito montanhoso, com estradas sinuosas que sobem desde 2000 metros acima do nível do mar até 3000 metros. Cidades como Adwa e Axum estão construídas em terras férteis, mas uma grande parte da população vive nas montanhas e recebemos relatos de que há pessoas que fugiram para essas áreas mais remotas para escapar à violência. 

Desafios logísticos, respostas tardias 

O esforço das nossas equipas tem sido titânico a todos os níveis: médico, financeiro, logístico e em recursos humanos. É um desafio incrível quando não há comunicações telefónicas nem Internet. No início não havia voos para Mekele e tivemos de transportar tudo por estrada desde a capital da Etiópia, Addis-Abeba, a uns mil quilómetros de distância. E não era possível fazer transferências bancárias porque os bancos estavam todos fechados. Ainda assim, conseguimos arrancar com as nossas operações. 

Agora, quase três meses desde o início do conflito, outras organizações estão a começar a aparecer, aos poucos, em algumas zonas. Estou impressionado com o quão difícil tem sido – e continua a ser – chegar a uma população tão necessitada numa área tão densamente povoada. Tendo em conta os meios e a capacidade de análise que organizações internacionais e as Nações Unidas possuem, o facto de tudo isto estar a acontecer é um fracasso do mundo humanitário. 

Ainda não conhecemos o impacto real desta crise, mas temos de continuar a trabalhar para o sabermos o mais depressa possível. 

Outras equipas da MSF estão também actualmente a providenciar cuidados médicos em diversas áreas no Sul, Centro e Noroeste de Tigré. Além das actividades em Tigré, as equipas da MSF têm prestado cuidados de saúde a milhares de pessoas deslocadas internamente e fornecido apoio a estruturas de saúde na fronteira da região de Amhara, no Norte da Etiópia, e estão a dar resposta às necessidades de refugiados etíopes que atravessaram a fronteira para o Sudão. 

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