Mais olhos que bazuca

O debate não será fácil e alguns tabus terão que ser ultrapassados. Mas é a própria credibilidade do projeto europeu e o futuro do planeta que estão em jogo.

A União Europeia e Portugal vivem um período excecional da sua história. Desde a II Guerra Mundial que a Europa não enfrentava uma crise desta magnitude. A incerteza continua a marcar as previsões macroeconómicas, mas certo é que a queda do PIB e das receitas fiscais vão atingir mínimos históricos. Ao mesmo tempo que a UE e os seus Estados-membros procuram minimizar os efeitos desta crise na vida das pessoas, na sua saúde, emprego e rendimentos, existem outras agendas que não podem esperar e requerem uma resposta igualmente urgente: a transição para um modelo económico amigo do ambiente, moderno e mais inclusivo.

Dar resposta à crise, rumo a um futuro em que o bem-estar das pessoas e a sustentabilidade sejam o centro das políticas públicas, requer coragem, ambição e investimento sem precedentes, quer ao nível nacional, quer ao nível europeu. Por exemplo, a Comissão Europeia estima que, só no que toca ao Pacto Verde Europeu, o cumprimento da meta de redução de emissões até 2030 implica mobilizar um investimento anual adicional de 260 mil milhões de euros.

Vários instrumentos foram criados para dar resposta à crise. Os 750 mil milhões de euros provenientes do programa Next GenerationEU, o programa de compra de dívida do Banco Central Europeu (PEPP) ou a suspensão das regras orçamentais adquirem um papel fundamental para colmatar as necessidades atuais de investimento, da mesma forma que poderão igualmente assegurar investimentos rumo a um futuro mais sustentável e resiliente.

No entanto, dada a magnitude da mudança societal a que a UE se comprometeu, desde o Pacto Verde Europeu, ao Pilar Europeu dos Direitos Sociais, parece óbvio que a “bazuca europeia” não será suficiente para dar resposta a todas as necessidades. Ao mesmo tempo, não podemos cair nos erros do passado. Se alguma coisa as instituições europeias aprenderam com a crise de 2008 é que a austeridade não só foi uma resposta inadequada como contribuiu para aprofundar ainda mais os efeitos negativos na economia e no bem-estar das pessoas. Quem lucrou com esta receita foram essencialmente os especuladores e os movimentos antieuropeus.

Desta vez a Europa não pode falhar e para isso, num primeiro patamar mais urgente, é necessário que o fundo de recuperação chegue à economia real quanto antes e manter a suspensão das regras orçamentais (PEC). Por outro lado, enquanto a “bazuca” estiver em vigor, durante os próximos três anos, será o momento de trazer para debate os vários instrumentos que serão decisivos para garantir um modelo económico mais sustentável e resiliente.

O debate não será fácil e alguns tabus terão que ser ultrapassados. Mas é a própria credibilidade do projeto europeu e o futuro do planeta que estão em jogo. Este é o momento de a UE demonstrar que a promessa de alcançar a neutralidade carbónica em 2050, ou a implementação de uma agenda social credível, que garanta que ninguém fica para trás, são mais do que slogans. Para cumprir com estes objetivos, é necessário que a narrativa seja correspondida por ferramentas orçamentais robustas e um enquadramento legal adequado para a União Económica e Monetária (UEM).

A arquitetura inacabada da UEM, e os constrangimentos resultantes da pertença a uma união monetária sem uma verdadeira união orçamental e fiscal, levou a que a resposta à última crise se tenha centrado na competição baseada em baixos salários, na redução de direitos e em práticas fiscais abusivas. O resultado, como se sabe hoje, foi catastrófico do ponto de vista humano e económico. Por isso, é necessário voltar a falar do aprofundamento da zona euro e da reforma das regras orçamentais provindas de Maastricht, ou seja, com mais de 30 anos e obsoletas para a realidade pós-covid-19. Desde que o próprio euro foi criado, vários pilares ficaram por fazer. Começámos pelo telhado, ou seja, por uma moeda única. Se é verdade que a zona euro é dotada de uma política monetária comum, parece óbvio que a sua sustentabilidade continua a depender também de uma capacidade orçamental adequada e de uma verdadeira política económica e fiscal comum.

Não podemos, também, aceitar o atual contexto de concorrência desleal. O projeto europeu é expressão de solidariedade e prosperidade partilhada, não um mero veículo para multiplicar os ganhos das grandes multinacionais. Nestes últimos anos fomos confrontados com vários escândalos (Panama Papers, Paradise Papers, LuxLeaks, OpenLux, etc.) que demonstram um verdadeiro atentado contra o Estado Social e o cidadão comum. Os trabalhadores, as famílias e as PME não podem continuar a pagar as faturas exorbitantes que nos são deixadas pelos esquemas fiscais de quem foge às suas responsabilidades elementares. Uma recuperação justa exige também um combate sem tréguas à evasão e elisão fiscal.

Este é o pano de fundo para a reflexão do próximo dia 6 de março, no âmbito das Conferências 86. Por uma sociedade mais resiliente e sustentável que coloca efetivamente o bem-estar dos cidadãos no centro das políticas públicas, nas suas várias vertentes, ambiental, económico e social. É hora de contribuir para mudar o paradigma neoliberal e conservador que dominou as políticas europeias na última década, e que tantos sacrifícios exigiu ao cidadão comum. É hora de melhorar os indicadores de bem-estar que o PIB dissimula quando encobre a desigualdade na repartição do rendimento, a propensão para a pobreza ou a degradação do meio ambiente. É hora de garantir um modelo económico que funciona para todos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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