A Irlanda já era rica quando era pobre

A direita está ofuscada pelo brilho do PIB irlandês e acredita que tudo se explica pelos impostos mais baixos pagos pelas empresas. Mais três mitos para o debate. E alguma luz sobre propaganda política.

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A Irlanda já era rica quando ainda era pobre. Isto tem 0% de ironia. Regresso ao tema por causa de três ideias ilógicas que circulam por aí. Se os mitos sobre a Irlanda fossem histórias para adormecer, investiria o tempo noutras coisas. Como são usados para convencer os jovens de que a Irlanda é um farol que nos ilumina, aqui estou de novo.

— Ah, mas o nível de vida é muito melhor na Irlanda!

Esta frase é dita para argumentar que a política fiscal irlandesa é uma maravilha e Portugal deve seguir o mesmo caminho. Pequeno problema: o rendimento per capita dos irlandeses é melhor do que o nosso há décadas. Muito antes de a Irlanda se ter tornado num paraíso fiscal e muito antes do “milagre” irlandês que tanto inspira a Iniciativa Liberal, o CDS e o Chega, já os irlandeses viviam e ganhavam muito melhor do que nós.

No final dos anos 1960, este era o tecto do rendimento per capita na Europa: 3553 dólares na Suécia, 2783 na França, 2702 na Dinamarca, 2520 na RFA, 2372 na Bélgica, 2300 na Islândia, 2210 no Luxemburgo, 1933 na Noruega, 1797 na Holanda, 1700 na Finlândia, 1660 no Reino Unido e 1525 na Itália.

Como era em Portugal e na Irlanda? 953 dólares na Irlanda e 423 dólares em Portugal. Menos de metade.

Os números são do Official Associated Press Almanac 1973, que comprei num alfarrabista por um dólar. Aí também se lê que os 3,1 milhões de trabalhadores portugueses ganhavam na altura “os salários mais baixos da Europa ocidental, o equivalente a dois dólares por dia nas minas e pedreiras, 1,8 dólares por dia na manufactura e 2,9 dólares por dia nos serviços de electricidade”. Fui ver país a país. Ignoremos os que tinham um rendimento per capita de dois dígitos (Afeganistão, Indonésia, Somália...). Acima dos mil euros, só havia 28 países. Os que já referi, mais países óbvios como EUA, Canadá e Austrália, mas também outros hoje menos óbvios, como Checoslováquia (1100 dólares) e Hungria (2068 dólares).

Na Europa, no início de 1970, só 11 países tinham um rendimento per capita abaixo de mil dólares: Irlanda (953); Espanha (818); Grécia (811); Bulgária (800); Chipre (769); Polónia (740); Roménia (600); Malta (564); Portugal (423); Jugoslávia (406), e Albânia (320). Está a ver o problema?

Os aspirantes a neoliberais sabem que seria ridículo comparar Portugal com a Suécia ou a Alemanha. Todos diriam “isso é incomparável!”. Para evitar o escândalo, comparam Portugal com a Irlanda e dizem que os dois eram pobres, mas um ficou rico e o outro não sai da cepa torta. Sugiro que encontrem uma alternativa mais credível. Comparar Portugal com a Irlanda é enganar os jovens e os eleitores por quatro razões: há 100 anos que a Irlanda tem quase 0% de analfabetos (em 1973 Portugal tinha 35%-40%); há meio século que a Irlanda tem um rendimento per capita muito superior ao de Portugal; em 1973, a Irlanda já estava à porta do grupo dos ricos, e há anos que é um paraíso fiscal que ajuda as multinacionais americanas e fugirem ao fisco.

Hoje, o rendimento per capita ajustado ao poder de compra em Portugal é 32,7 mil dólares (2018) e na Irlanda é 67 mil. Quase metade. Como no fim dos anos 1960. Parece O Leopardo, de Giuseppe di Lampedusa. Visto à luz do longo prazo, o “milagre” da Irlanda fica menos vistoso.

— Ah, mas a economia da Irlanda cresceu com a política fiscal competitiva e Portugal não!

Sim, a Irlanda cresceu mais do que Portugal, mas não tanto quanto se julga. Quando se compara o crescimento anual médio do PIB per capita em dólares correntes entre 1960 e 2009 — antes do grosso do impacto das Big Tech americanas — vê-se que a Irlanda cresceu 9,24% por ano, em média, e Portugal 8,86%, uma diferença pequena, mas que a prazo tem efeitos cumulativos altos. A década de 1960 favoreceu Portugal, mas o indicador PIB per capita favorece a Irlanda de forma muito artificial.

Os mais espirituosos perguntam porque não vêm os irlandeses a correr para Portugal, sendo lá tão mau e aqui tão bom. Fui ver os números. Em 2017, havia na Irlanda 2673 residentes nascidos em Portugal (Observatório da Emigração) e havia em Portugal 1337 irlandeses (Serviço Estrangeiros e Fronteiras). É quase o dobro, mas ambos são números inexpressivos.

Relevante é a Irlanda ser um dos raros países do mundo — talvez o recordista — que tem muitos imigrantes e muitos emigrantes. Entre 2009-2012, saíram da Irlanda 80 mil pessoas. Mas em 2007, antes da crise, tinham saído 70 mil. Sabe o que disse John Kennedy quando foi à Irlanda em 1963? “A maioria dos países envia petróleo ou ferro, aço ou ouro, mas a Irlanda só teve uma exportação — o seu povo.” Roubei a citação ao departamento de Geografia da Universidade de Cork. É também aí que se lê que “dez milhões de pessoas emigraram da Irlanda desde 1800”.

Dirão: emigravam quando a Irlanda era pobre. Falso. Hoje — com o PIB a piscar — continuam a emigrar. E muito. 65 mil em 2017 e 56 mil em 2018. Sempre foi assim e tudo indica que continuará por muitos anos. Come on. Até Charles de Gaulle descendia de irlandeses.

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