Avião no braço, urso na mochila, Manuel palmilha o mundo com “uma perna às costas”

Pode ter-se amor às viagens? Se sim, então aqui temos um verdadeiro caso de amor. Manuel, especialmente agora durante a pandemia, gosta de passar os dias a planear e a sonhar com as viagens que fará. E são sonhos para concretizar. Aos 70 anos, sem nunca se deixar abater por usar uma prótese, já correu, devagarinho, meio mundo.

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Para combater este período "complicadíssimo", veio a companhia do Chisco, um energético Jack Russell Terrier Duarte Drago

É raro o dia em que Manuel Pacheco não pesquisa viagens. Leva as manhãs a ver “valores de voos” na Internet. Procura alojamentos, planeia idas a países longínquos. “Já de seguida”, ou assim que a pandemia o deixar, quer ir “a Lima e a Cusco”, no Peru. E, já que vai “para ali”, talvez suba até San José, na Costa Rica, e dê mais um salto ao Panamá. Há três anos, aos 67, tatuou no antebraço um avião. São as viagens que o movem.

Tudo principiou com Marrocos, “para aí no começo dos anos 1980”, recorda. “Cresci na Zambujeira [do Mar]. Não havia nada de nada, nem electricidade tínhamos, mas sempre gostei muito de ler”, conta para justificar a vontade de conhecer aquele país, ainda perto e acessível de carro mas já tão exótico. “Era um sonho desde miúdo.” As pessoas, a comida, os hábitos, era “tudo tão diferente”. Ficou “encantado”, “apaixonado pela cultura” ao ponto de repetir as idas a Marrocos “quase até à exaustão”.

Desde então, Manuel já andou “por todos os lados”. A “última grande mochila” foi no Chile, 21 dias sozinho a palmilhar o país, de Santiago à Patagónia, “outro sonho”. Acrescentem-se quase todas as capitais da Europa, ainda que as grandes cidades não o entusiasmem, Argentina, Uruguai, de África do Sul à Tanzânia de comboio, de Singapura à Tailândia, Vietname, Laos, Camboja ou Indonésia. Com amigos, agências de viagens ou sozinho.

Manuel não passa despercebido por onde viaja. No Ultramar, foi destacado como soldado em Moçambique. “A guerra era muito dura e um dia pisei uma mina. No dia 21 de Maio. Fiquei queimado, sem uma perna, todo destroçado. Mas todo para cima sempre, nunca me fui abaixo.” É com a mesma naturalidade com que fala do assunto que passeia pelo mundo “de calção” e prótese à mostra. “Sou muito abordado na rua porque as pessoas ficam admiradas. Acham curioso.” Não é coisa que lhe tire mundo nem aventuras. Vai sempre, nem que seja “com uma perna às costas”, brinca. Só na Colômbia se viu obrigado a desistir de uma caminhada “muito dura” por um vale “atolado de lama”.

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Há um outro pormenor que o destaca entre viajantes: o urso de peluche, comprado por brincadeira em Barcelona há “uns vinte e muitos anos”, baptizado de Afonso na Malásia pela enfermeira Isabel, uma das viajantes do grupo. “Faço fotografias com ele em todo o lado. Já aconteceu estar sozinho em Cabo Verde na praia, numa espreguiçadeira, e o urso na outra.” Diverte-se a ver a reacção das pessoas ao urso Afonso que, entretanto, já viaja sozinho. “Uma amiga minha perguntou-me se o metia numa caixa de correio. Foi para casa dela e foram para Boston.” Mas do Porto a Barcelona, da Islândia à Suécia ou Jordânia, o viajante Afonso já deu umas boas voltas.

Com ou sem peluche, Manuel já terá visitado 57 ou 58 países, faz entre três a seis viagens por ano. Mas os números não lhe importam tanto quanto as experiências. Viaja por onde lhe guia a curiosidade. Regressa aonde se sente em casa. A Moçambique, por exemplo, já foi “dez ou doze vezes”. É “outra paixão”. Voava para Maputo e depois metia-se no “chapa”, as “carrinhas Toyota Hiace, muito antigas e velhas, que vêm da China e que são os transportes públicos de Moçambique”. “Deviam levar sete pessoas e levam 20 ou mais, e galinhas, sacas de milho, cocos...”

“Se me sinto bem, volto”

Um dia, falaram-lhe da praia do Tofo, em Inhambane. “Quando saí da carrinha, não havia ruas arranjadas: era areia e casas na areia. E senti-me quase como na Zambujeira da minha infância. Uma aldeia de pescadores muito pobre e senti-me em casa. Adorei Inhambane.” Sempre que regressa a Moçambique, volta ao Tofo. “Com facilidade encontro pessoas.” Habitantes locais que se tornam amigos que se tornam família.

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“Há muita gente que não repete. Já foram, já conhecem tudo. Eu não. Se me sinto bem, volto. Acho que é sempre diferente.” Regressou tantas vezes “às ilhas quase todas” que se diz “um bocado cabo-verdiano”. E tem também “muito Brasil” na bagagem, das praias onde combatia o Inverno da Zambujeira à Amazónia. “Era um sonho. Assim que a TAP começou a viajar para Manaus, fui um dos primeiros a apanhar o voo.” Se entretanto já tiver sido vacinado contra a covid-19, e as ligações aéreas retomadas, São Paulo é o primeiro e único destino de passagens compradas: “Tenho o voo para 21 de Maio, vamos lá ver.” Certo é que a viagem ao Japão, marcada para Março de 2020 e remarcada para Março de 2021, vai ser de novo adiada.

Em 2019, tinha sido “a loucura”. Por esta altura, viajava de comboio entre a Índia e o Nepal, depois foi aos Açores, regressou ao Brasil um par de vezes, adorou o Irão (“É o topo, não há explicação para aquela gente”), desceu de Helsínquia (Finlândia) até Varsóvia (Polónia) de mochila às costas com um grupo de amigos das viagens, e em Novembro estava na Colômbia (“não foi muito importante”, como repete para os países aonde não deseja voltar, mas não há-de esquecer o jantar numa prisão feminina).

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Estar parado, sem mundo, preso em Lagos, cidade onde vive há oito anos, tem sido “complicadíssimo”, assume. Veio o Chisco, um Jack Russell Terrier com dez meses e uma energia inesgotável, mas o bichinho das viagens não esmorece. “É que nem saio daqui. Fui a Lisboa duas noites e fui à Arrábida, que uns amigos organizaram um passeio”, aponta. “Éramos cinco pessoas. Foram três dias, duas noites, em caminhos muito duros. Mas foi um passeio giro.” A única viagem de 2020 foi “a Palmela”, ri-se.

Por isso, não compra voos e atira os planos já para o próximo ano, mas não deixa de sonhar com viagens. Regressar à Madeira e aos Açores, agora com o Chisco, ir ao Peru e ao Japão, voltar ao Nepal, Sri Lanka, Chile, Malásia. Está “sempre a imaginar uma volta ao mundo”. “Digo que é a meia volta ao mundo. Só de uma vez, sair de casa e regressar passado x tempo. Para despedir-me dos locais que conheci.”

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