Enterrados vivos sem Cultura nem livros

Quando os agentes da Cultura são forçados a ficar longe dos seus espaços naturais e de todos nós, seu público agradecido, algo de muito errado se passa. E não digam que é a pandemia, porque essa, com todas as culpas que, de facto, carrega, tem as costas largas.

Os dias passam como se não passassem. Os sorrisos fingem-se. A alegria é de plástico. É de pechisbeque o entusiasmo que se coloca no trabalho. Perdão, no teletrabalho. Que está tão cheio de virtudes que não há espaço da intimidade em que não interfira. Mas não há problema, porque tudo está previsto em decretos e despachos dos outros. Os que fazem da sua vida uma colecção de decretos e despachos. Estão habituados a despachar. E a despachar-nos.

A vida que levamos há quase um ano tornou-se monótona, enfadonha, triste, linha de montagem no filme de Chaplin, longe de tudo o que nos caracteriza como seres humanos. Sentimos falta dos familiares mais próximos e dos amigos. Do toque, do abraço, do carinho, da ternura. De ver com o coração e sentir com os olhos. De ultrapassarmos toda e qualquer distância com o mais simples dos gestos. De vivermos na plenitude a nossa essência. E essa está expressa na dimensão emocional, mas não se esgota aí – estende-se ao domínio das ideias, da inspiração, da criação.

Como pode cumprir-se esta parte se os livros estão guardados a sete chaves, fecharam os teatros, encerraram os cinemas, os museus só existem no mundo virtual, as galerias estão nuas e frias? Mais do que cadáveres adiados que procriam, sem Cultura nem livros estamos enterrados vivos. E é tão contranatura a reunião destas duas palavras como aquilo que nos estão a fazer, assim fazendo com que nos sintamos dessa forma. À míngua de oxigénio. Asfixiados.

Quando os agentes da Cultura são forçados a ficar longe dos seus espaços naturais e de todos nós, seu público agradecido, algo de muito errado se passa. E não digam que é a pandemia, porque essa, com todas as culpas que, de facto, carrega, tem as costas largas. Não houve sequer a mais pequena evidência de que uma sessão de teatro ou cinema, um concerto, a visita a um museu ou a uma exposição tenham contribuído para multiplicar cadeias de transmissão. Vi e cumpri todas as regras em diferentes espaços do género. Numa dessas ocasiões, lá estava, na primeira fila do concerto, quem nos tem cortado a possibilidade de premiar com aplausos ao vivo outros ramos da nossa família, os artistas. Ninguém de lá saiu infectado, a não ser com o vírus do sonho. E este, tanto quanto sei, se muda o mundo é para melhor.

Agora que um político decretou — deixando contrariado outro político, conforme o próprio reconheceu ao dizer que “o senhor Presidente da República proibiu-nos de proibir” — o regresso dos livros às prateleiras de supermercados e hipermercados a partir de dia 15, é fundamental insistir no óbvio: o acesso ao livro em particular e à Cultura em geral e ao vivo, não no descafeinado e artificial online, TEM DE estar disponível, mesmo em contexto de pandemia. Com regras? Claro que sim! Todos as conhecemos já de cor e salteado, esforçamo-nos o mais possível por respeitá-las, mesmo que haja sempre quem esteja disponível para fingir que se esquece. Esses são as excepções. E não deve ser por eles que se ditam regras, sobretudo quando estas são absurdas. Mas não surpreende que haja insensibilidade de quem decide, esse é já um filme repetido: quando os incêndios nos assaltaram a alma, roubando-nos tantos iguais a nós e tanto do que nos faz falta, todos os dias, olhou para os rostos onde estava a dor, mas não os viu.

Não é possível continuar a oscilar entre o paternalismo e a irritação, os apelos e os agradecimentos, as censuras e os elogios, exigindo de todos nós compreensão, solidariedade e união sem que se entenda algo muito simples: merecemos mais respeito. E, quando o poder público impossibilita o acesso à Cultura e aos livros e assim nos menoriza, a resistência, conforme nos ensina a Constituição no seu artigo 21.º, mais do que um direito torna-se um dever de cada cidadão. E não, não é resistir contra todas as regras e autoridades ou um apelo à anarquia; é resistir ao absurdo, ao desnecessário, ao gratuito. Como, por exemplo, o fecho puro e simples de livrarias, teatros, cinemas, museus ou galerias.

Nelson Mandela afirmou que “a educação é a mais poderosa arma que se pode usar para mudar o mundo”. Interrogo-me até que ponto, quando nos privam do acesso aos livros e à Cultura, mesmo invocando o estafado argumento implícito de que é para nosso bem, isso não será uma falta de educação. E agora vou voltar para o teletrabalho. Já falta pouco para acabar. São só mais umas horas. Uns dias. Uns meses. Ou mais.

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